domingo, 8 de novembro de 2015

One of my heroes: Carlos Drummond de Andrade

Um iogue? Não, um poeta

“Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor”.

Sentimento do mundo (fragmento)

Este é Carlos Drummond de Andrade, um dos (poetas) favoritos de todos os tempos, ontem, hoje e sempre. O tipo de artista que a gente precisa, para lembrar que a palavra é ouro quando o emaranhado de letras e livros vazios, e canções idem, e mensagens ocas pouco ajudam como antídoto à infelicidade e embrutecimento da alma.

Em “Sentimento do Mundo”, livro de poemas de 1940 (o terceiro da carreira), Drummond tem a maturidade de um homem de 38 anos e dirige a atenção não apenas para o “eu”, mas observa com os olhos de poeta as mazelas políticas e sociais e a loucura que afligiam a humanidade daquele tempo de Guerra Mundial, a segunda do século XX.

Não deve ter sido fácil, claro que não, ter passado por anos tão angustiantes e tristes, em que as únicas certezas eram a morte e a “razões” da ordem das baionetas. Um mundo caduco. Enquanto a Europa, sobretudo, era dilacerada pela loucura mais pernóstica dos homens, e a desventura se espraiava na geopolítica, para além do Atlântico Norte, o Mediterrâneo, a Ásia e a África, os ecos desse estrondo chegavam às praias tropicais.

Getúlio Vargas e seu charuto
Nazismo e fascismo eram palavras comuns naquele tempo de Estado Novo e de Getúlio Vargas passeando, apontando o charuto, por um rico estado pobre, uma imensa lavoura arcaica na América do Sul, ávida por desenvolvimento, cruel em sua realidade de pobres e ricos e terreno fértil de esperança.

Drummond, 113
Tudo isso só para dizer que é injusto passar batido por uma efeméride que lembre Carlos Drummond de Andrade. Em 31 de outubro passado, Drummond teria completado 113 anos de nascimento. Ninguém vive tanto assim. Ele partiu para algum lugar em 17 de agosto de 1987 e deixou obra que é um cantil de água fresca no deserto, uma boia para quem está se afogando, lanterna para caminhos escuros. Luz que só a poesia pode proporcionar.


Carlos, gauche na vida, produziu nossa melhor literatura. Em 1973, muito brasileiros foram apresentados ao poeta, por meio da extinta revista “Mais”. Em seu primeiro número, a publicação trazia de brinde um disco em vinil, tamanho compacto. Nele, sob produção musical de Fernando Faro, o ator Juca de Oliveira, aos 38 anos (que coincidência), comanda sessão de leitura de fragmentos de poemas de Drummond e de Vinicius de Moraes, acompanhado em alguns momentos pelo violão de Toquinho.


Só ouvindo a apaixonada interpretação de Juca, para captar o clima de emoção fervente. Ao trazer para a primeira pessoa a voz contida em versos, Juca transforma-se em Vinicius e em Carlos, a palavra salta do papel e vira som alado, os poetas em confissões, das mais engraçadas às mais sofridas. That’s art, baby.

“Poema das Sete Faces” (Drummond, 1930) está presente. Juca de Oliveira parece mesmo em um confessionário:

Quando nasci, um anjo torto 
desses que vivem na sombra 
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens 
que correm atrás de mulheres. 
A tarde talvez fosse azul, 
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas: 
pernas brancas pretas amarelas. 
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. 
Porém meus olhos 
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode 
é sério, simples e forte. 
Quase não conversa. 
Tem poucos, raros amigos 
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste 
se sabias que eu não era Deus 
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo, 
se eu me chamasse Raimundo 
seria uma rima, não seria uma solução. 
Mundo mundo vasto mundo, 
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer 
mas essa lua 
mas esse conhaque 
botam a gente comovido como o diabo. 

Juca de Oliveira (foto: João Caldas)

“Resíduo”, poema contido no livro “A Rosa do Povo” (1945), em sua maneira fragmentada, declamada por Juca de Oliveira, foi dividido em duas partes (lado A e lado B), abrindo e fechando o disco. Ficou assim:

Lado A:

“De tudo ficou um pouco. 
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco 
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó 
de que teu branco sapato 
se cobriu. 
Ficaram poucas 
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço - vazio - de cigarros, 
ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, 
um pouco 
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo 
no pires de porcelana, 
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa, 
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria 
um pouco de mim? 
no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?"

Lado B:

"De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio 
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, 
gemido 
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... 
de aspirina.

De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa 
o insuportável mau cheiro da memória”.

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