sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Adriano Rocha e os mestres do samba-rock


Cantor e compositor Adriano Rocha

Onde Tem Vagabundo O Capeta Não Encosta (2019)


Em resumo: este é sobre o cantor e compositor Adriano Rocha, baiano-brasiliense, que está lançando o primeiro CD autoral, intitulado Onde Tem Vagabundo O Capeta Não Encosta. Para quem é familiarizado com os jargões do jornalismo, rola de entrada um nariz de cera totalmente sambarilove dedicado ao samba-rock.

Eu quero ver a confusão/ É, um samba-rock, meu irmão (Jackson do Pandeiro)

Tá legal/ Tá legal/ Eu aceito o argumento/ Mas não me altere o samba tanto assim/ Olha que a rapaziada está sentindo a falta/ De um cavaco, de um pandeiro/ Ou de um tamborim 
(Paulinho da Viola)

Por favor/ não leve a mal/ Mas não entendo, pessoal/ Alguém tem que me explicar/ Ouve rock o ano inteiro/ Quando chega fevereiro/ Vai para a escola, desfilar (Cyro Aguiar) 


In the beginning...

Em "Batuque", de J.M. Rugendas, esse pessoal tá fazendo o quê?
O que segue é conversa antigaça, a transmutação do samba em outras coisas que já nem cabe chamar música assim de samba. Tipo aquele casamento com o drum'n'bass, lembram? Fofoca de alcova: nessa época, o samba andava traindo o rock. Mas o samba trans ainda é samba? Samba! Então, pula a parte do começo do começo da civilização, século XIX no Recôncavo Baiano [samba no Rio de Janeiro é outro assunto], a música dos negros escravizados, que se juntavam em festas (quando podiam), para celebrar a vida emanada de um único lugar possível: mama África.

Pula tia Ciata, Donga Pelo Telefone, pula também Sinhô, Noel Rosa, avança um pouco mais e, e ok, chegamos a meados dos anos 1950. O mundo pós-guerra. O samba vinha de padrões rítmicos em que imperava a batucada. O samba gravado mais parecia folguedo popular do que batida cadenciada. Os naipes percussivos tinham frigideira, instrumento de som tão agudo, capaz de atrair boiada. Por isso que naquelas gravações antigas, o que se ouve é aquele telecoteco estridente.


Define Henrique Autran Dourado, no Dicionário de Termos e Expressões da Música (2004): "Em função das inúmeras combinações do samba com outros ritmos e tendências, surgiram gêneros como o samba-canção, o samba-choro, a bossa-nova, o samba-de-breque, o samba de roda, o samba de terreiro, o samba de partido alto, e o samba-enredo, que têm papel preponderante na tradição das escolas de samba, além de experiências com o SAMBA-ROCK.

O termo, por óbvio, ganhou verbete nessa obra. Diz que na receita leva samba com funk, soul, jazz, rhythm'n'blues e rock. Você pode tentar fazer em casa, mas é bom insistir até a mistura ficar boa. Ademan, o livro de Autran Dourado finca no tempo e no espaço Jackson do Pandeiro e a irresistível Chiclete com Banana (1958), onde o termo teria aparecido pela primeira vez.





Juscelino Kubitschek acompanha a Copa de 58 no rádio 
Nesses tais anos 1950, se permitem a divagação, depois do suicídio de Vargas, tivemos os anos JK (1956-1961), os famosos anos dourados, nos quais o Brasil, alçado a legítimo representante do Terceiro Mundo, com toda a sua grandeza e miséria, anteviu altas decisões e confiança sem limites no seu grande destino. Teve também endividamento, mas não vem ao caso agora.

JK e amigos do Clube da Esquina
Eventos marcantes do período costumam vir associados a essa Renascença cabocla: além do presidente Bossa-Nova, uma democracia de dar inveja no mundo louco por reconstrução; a decisão de construir Brasília, a capital da esperança; a megalomania populista de desenvolver 50 anos em 5; Pelé, Garrincha e a Copa do Mundo de 58; Maria Esther Bueno e, não menos importante, o advento da Bossa Nova.

João Gilberto só observa

Panteão da Pátria - Memorial Tancredo Neves, Brasília (DF)

No Livro de Aço, do Panteão da Pátria não consta, mas nunca é tarde para incluir nomes de pessoas ligadas à música, entre as quais João Gilberto, é claro, e Edison Machado, o baterista responsável por verter para o instrumento o léxico do samba.

Bateria do samba x bateria do jazz = Edison Machado
A batida do samba na bateria. Parece banal hoje em dia? Nunca foi. Em uma linha evolutiva, que inclui muitos nomes, Edison Machado lançou os fundamentos da matéria. Vejam, o samba de roda era uma coisa, a outra era o samba de carnaval, que pressupunha um monte de gente organizada nos tambores, tamborins, chocalhos e o que mais produzisse som percussivo. Resumindo: muita gente tocando, som cada vez mais alto. Justo. Isso é música para as ruas, como bem sabe o carnaval do Rio de Janeiro.


Talvez, a revolução deflagrada por Miles Davis, e seu cool jazz, em Birth of The Cool (1948) tenha acionado o gatilho. O jazz não precisava mais ser ruidoso e sempre tocado na formação de big band. A proposta de fazer tudo com um quarteto, quinteto ou sexteto, abriu espaço para a música se tornar mais clara e intimista. Os instrumentos ficaram perfeitamente audíveis. No caso de Davis, foi um noneto – incluindo Gerry Mulligan, no sax barítono, que redefiniu a maneira do jazz se mostrar ao mundo.

Inevitável que a influência do jazz mundo afora chegasse às boates do Rio de Janeiro. Não vamos nos ater às questões puramente técnicas da execução, mas fato é que, Dick Farney, Bené Nunes, Luiz Eça, e Johnny Alf, só para ficar nesses quatro gigantes do piano que militavam nos nightclubs dos anos 1950, sabiam como transpor o samba para o instrumento.

Com a mão na boca, a garota sussurra: Johnny Alf é o fino!
E se na batida do violão da Bossa Nova, João Gilberto é Deus; na bateria, Edison Machado, tomando o formato de um instrumento típico do jazz, criou um negócio não menos revolucionário. Milton Banana viria logo depois e, babau, estava consolidado um novo jeito do batuque como acompanhamento.

Por motivos mercadológicos, aquele samba na bateria, totalmente influenciado pelo jazz, ficou irresistivelmente dançante e precisava de outro nome. Sambalanço, pilantragem, samba-jazz e, mais tarde, samba-funk e samba-rock, dependendo do artista e do disco lançado, esses nomes ajudavam a diferenciar o que o ouvinte recebia.

Simonal, the king of pilantragem
A discografia do assunto é imensa. Passa por, entre outros, Luiz Bonfá, Roberto Menescal, Marcos Valle, Sérgio Mendes, João Donato, Waldir Calmon, Eumir Deodato, Os Catedráticos, Meirelles e os Copa 5, Elza Soares, Jorge Ben, Miltinho, Walter Wanderley, José Briamonte, Orlandivo, Dóris Monteiro, Ed Lincoln, Wilson Simonal, Antonio Adolfo e A Brazuca, Cyro Aguiar, ufa, sem falar na profusão de trios e outras formações, cujo instrumental fazia a ponte entre o jazz, o samba, a bossa e essa coisa chamada Música Popular Brasileira. Bossa Três, Tamba Trio, Zimbo Trio, Sambalanço Trio, Bossamba, Sambossa 5... ao infinito e além!




Por ora, deixe de lado a estupefação de Cyro Aguiar, signatário das indagações de Jackson do Pandeiro e se perguntava como é que o cara curte rock’n’roll (uma coisa inventada pelos gringos), mas fevereiro/março tava lá na tal folia de Momo.

Pela sapiência, o argumento de Paulinho da Viola também merece estudo profundo. Acompanhem o raciocínio da letra: Sem preconceito/ Ou mania de passado/ Sem querer ficar do lado/ De quem não quer navegar/ Faça como um velho marinheiro/ Que durante o nevoeiro/ Leva o barco devagar.




Em um primeiro momento, você pode achar que Paulinho da Viola está passando atestado de covardia, pois está dizendo, tipo, não, não vou me aventurar muito por aí, melhor ficar no feijão com arroz (não misturar banana com chiclete), donde o papo do velho marinheiro que leva o barco numa boa. Porém, como Paulinho é gênio, fica a sabedoria, senhora das decisões, soberanas sobre o comportamento.

Tudo isso, enfim, é só para dizer que um dia o tal do samba-rock fez a ponte entre a instrumentação da moda adotada pelo rock’n’roll (baixo, guitarra, bateria e vocal) e, assim como Edison Machado adaptou o idioma para instrumento, o gênero tornou palatável o sacundin, o ziriguidum e o telecoteco para uma plateia, à época, mais interessada nas guitarras de Jimmy Page, nas viagens do Pink Floyd e nos rebolados de Mick Jagger do que as agruras do morro cantadas por Monsueto.

Monsueto Menezes, primo


Observem como as coisas são contraditórias. Um dos discos mais famosos do gênero, a coletânea Samba-Rock: O Som dos Blacks, lançado em 1981 – quando aquele momento glorioso da Bossa Nova e derivados já havia ficado para trás –, apresentava uma seleção disparatada de nomes que vestiam a camisa: de Jorge Ben a Bebeto, passando pelo jamaicano Desmond Dekker, Waldir Calmon e Renato & Seus Blue Caps. Tudo era samba-rock. Egresso da Jovem Guarda, até Erasmo Carlos (que não está nesse disco) chegou a ser assim rotulado.

Erasmo Carlos (1971), modo samba-rock


Adriano Rocha, os discos e nada mais
Então, tá bom. Chegamos ao nosso personagem da vez. O cantor e compositor Adriano Rocha, baiano de São José da Vitória, mas brasiliense de coração desde 1995, não está lançando exatamente um disco de samba-rock.

Seu primeiro trabalho autoral, que ostenta o singelo título de Onde Tem Vagabundo O Capeta Não Encosta, traz uma bela audição de autêntica Música Popular Brasileira.

Mas não apenas. Nas entrelinhas e arranjos conduzidos pelo pianista José Cabrera, Adriano Rocha nos apresenta obra que merece a comparação com os grandes nomes do gênero aqui em destaque.

Às cegas, ouvem-se ecos de Jorge Ben (Vamos Sambar, Maria), Hyldon (Baiana ou Carioca), Chico Buarque (Pedro Meia-Colher seria um parente distante do Pedro Pedreiro), reggae e samba-rock. Não que ele esteja emulando seus heróis. Ao contrário, trata-se de alguém educado a base de toneladas de discos de vinil, essa sim, uma grande escola nessa vida.

Na conversa a seguir, Adriano Rocha explica porque o Capeta não encosta onde tem vagabundo.

Blog do Hektor – Primeiro trabalho autoral.

Adriano Rocha – Sim, já tinha feito outros dois discos de forma independente, mas não cheguei a lança-los. Achava que faltava alguma coisa neles. Nesse tem pelo menos umas quatro músicas desses trabalhos.


BH – O que significa a expressão “Onde tem vagabundo, o capeta não encosta”?

AR – Na minha cidade, lá no sul da Bahia, São José da Vitória, perto de Itabuna, tem um camarada que gosta de tomar uns gorós. Ele tem esse ditado: eita, onde tem vagabundo, o satanás não encosta!  Por uma coincidência, à época da votação do impeachment da (presidente) Dilma, em 2016, todos aqueles que votavam pelo afastamento diziam: em nome de Deus, por Deus, eu digo sim. Daí eu pensei: putz, realmente aquela [o Congresso Nacional] é uma casa de Deus, ali o diabo não encosta. É o que digo na letra: “Por medo de lavar toco, medo de ser lesado, o tinhoso não vai ao Plenário”. Do jeito que eles colocam, parece que é uma casa abençoada. É uma letra crítica a essa situação.

BH – Invocam o nome de Deus de maneira banal, não é?

AR – Sim. Já que é que é tão Deus, vamos tirar o diabo daí, hahaha.

BH – Nesse disco, percebe-se a Bahia, do início ao fim.

AR – Tem muita Bahia, muito Rio, muito Nordeste.

BH – Sim. Mas tem influência do samba da Bahia? Você sabe, tem o samba do Rio, o samba de São Paulo, o samba da Bahia.

AR – Meus mestres do samba são Ederaldo Gentil, Riachão. Gosto muito do samba da Bahia. No que se refere ao samba-rock, tem aquela pegada do Arnaud Rodrigues.

Arnaud Rodrigues (1940-2010)
BH – Caramba. Arnaud Rodrigues!

AR – Sou fanzaço! Pra mim, uma grande referência, um dos maiores compositores de música popular.

Paulinho e Baiano (Arnaud e Chico Anysio)
BH – Arnaud Rodrigues, parceiro do Chico Anísio.



AR – Baiano e Os Novos Caetanos. Muito bom. E tem o Som do Paulinho, disco de 1976. Os solos do Arnaud são muito bons.


BH – Na faixa “Baiana ou Carioca”, percebe-se uma influência de Hyldon, baiano. Sabe, a entonação, aquela pronúncia aberta: “meninaaa”.



AR – Que massa! Essa tem uma curiosidade. Inicialmente, ela seria uma balada meio funk. Mas no estúdio, no refrão “Ê, Isaura, toca viola...”, a banda meio que intuitivamente foi para o samba. Eu disse: legal, vamos embora.

BH – O disco tem muito de samba-rock.

AR – Sim.

BH – Saiba que eu vou colocar esse CD junto aos discos de samba-rock, sambalanço: Hyldon, Cassiano, Tim Maia, Carlos Dafé, Franco....



AR – Esse é o meu universo. Eu sou um colecionador do vinil. Meu gosto musical, digamos, parou nos anos 1970. Anos 90, ainda vai. Mas anos 80, eu abomino, não gosto.

BH – Essa foi uma época difícil para a MPB, não foi? Outros gêneros dominaram as paradas.

AR – Entraram os eletrônicos. Muitos se venderam, aquelas coisas de baladinhas com teclados e bateria eletrônica. Até gosto da música brega, aquela música extremamente comercial da época. Comparando ao que se faz hoje.... Posso até citar Yahoo, Roupa Nova.

BH – Lembro de estar em Fortaleza, na época do auge de “Menina Veneno”, do Ritchie. Avemaria, tocava em tudo quanto é lugar.

AR – Exatamente. Hoje tem um valor nostálgico imenso. Tenho essas coisas em casa, não deixo de ouvir. Fico muito feliz.

BH – Como é a sua ligação com o vinil?



AR – Meu primeiro disco, comprei com oito anos de idade. Foi o “Nação”, da Clara Nunes, por causa da composição “Ijexá”: Filhos de Gandhi.... Minha referência de música começa em casa, com meu pai, que foi um grande ouvinte de MPB. Ele não gostava que eu manuseasse os discos dele. Eu fui para a escola, guardei o dinheiro do lanche. Daí passei na loja de discos, na avenida Cinquentenário, em Itabuna, e comprei o “Nação”. Isso foi em 1983. Quando chegou em casa, meu pai ouviu aquele som: “Filhos de Gandhi. Badauê...”. Daí ele disse: já falei que não quero que você mexa nos discos! Claro que eu retruquei: esse aí, não. Esse é meu!



BH – E ele tinha esse?

AR – Tinha, o lance é que ele não gostava que eu pegasse nos discos dele.

BH – E qual foi a reação que ele teve?

AR – Olhou assim... mas não falou nada.

BH – A partir daí ele franqueou o acesso aos discos dele?

AR – Não. Ele até comprava discos pra mim. Ele tinha os dele, eu tinha os meus. Entendo o sentimento. Minha filha hoje tem exatamente 8 anos. Ela pode manusear alguns da minha coleção, hahaha. Resumindo, nunca deixei de ser vinilista. Continuo indo atrás. Conheço todo mundo. Pessoal que troca ideias no Facebook, os discos raros, os caríssimos.


BH – Pela conversa você parece ter o “Paêbirú” (Lula Côrtes & Zé Ramalho).

AR – Tenho.

BH – Sério? Aquela edição original que sobrou da enchente ou a cópia não autorizada?

AR – A original. Fizeram mil cópias. Teve a enchente que destruiu um tanto e sobraram alguns exemplares. Acho que consegui esse em 1997, na Sete Portas, Cidade Baixa, em Salvador. Um cara que tinha uma revistaria por lá tinha esse para vender. Eu comprei sem saber o que estava comprando e ele vendeu sem saber o que estava vendendo. Olhei a capa e disse: caramba, que disco é esse do Zé Ramalho? Comprei barato.

BH – Você deu a maior sorte, os originais valem uma grana. Dizem que o Zé Ramalho renega esse disco porque, entre outros fatores, não é ele que está na capa. É o Lula Côrtes. O Zé está na contracapa.

AR – É verdade, mas o disco, na verdade, é do Lula. Ele participa. O Zé Ramalho nunca teve aquela psicodelia, por mais que ele seja considerado psicodélico.

BH – A Dança das Borboletas....

AR – “A dança louca das borboletas...”. Essa é do primeiro disco, que tem “Avôhai”. Depois ele tocou isso com o Sepultura, no Rock In Rio. Essa é uma música até tranquila. O Lula Côrtes está mais para aquela onda do “Molhado de Suor”, o primeiro solo do Alceu Valença, com a Ave Sangria.




BH – Ave Sangria, depois de muito tempo, parece que acabou de lançar um álbum.


AR – Sim, aos 45 do segundo tempo.

BH – Banda do Paulo Rafael, guitarrista do Alceu...

AR – É o remanescente da banda que acompanhou tempos atrás o Alceu Valença.


BH – Lembro que ia para a casa de um amigo, para ouvir um LP instrumental, muito bacana, do Paulo Rafael. Anos 1980. Faz uma paulada de tempo.


AR – Disco foda do Paulo Rafael é o Caruá, com o Zé da Flauta. Esse que você está falando é o que tem uma capa vermelha, ele sentado na beira de um lago. Não gosto muito desse, não. A sonoridade não me atrai. É muito anos 80. Você precisa ouvir o Caruá; é raríssimo. Muito bom, de 1980. O Lenine canta uma música nesse.

BH – Bem, a gente gostava dos guitarristas dos anos 80. Victor Biglione, Ricardo Silveira.... A galera do rock sempre considerou Pepeu Gomes.

AR – O Brasil tem muitos guitarristas. Meus favoritos são o Hélio Delmiro....

BH – Vixe...





AR – Hahaha. Heraldo do Monte, em primeiro lugar. O Ave Sangria teve um grande guitarrista, que faleceu em 2016, o Ivinho. Esse cara fez um show em Montreux, tocando craviola, uma coisa louca. Ele gravou um disco de samba-groove com o Xangai, chamado Acontecivento. Esse tem groove, samba... Com Rubão Sabino, da banda do Gilberto Gil, no baixo.... Tá lá o nome dele: Ivinho 20 Dedos, o cara era muito bom. O Ave Sangria gravou os três primeiros discos do Alceu: o Molhado de Suor (1974), o Vivo! (1976) e Espelho Cristalino (1977), que são os discos antológicos do Alceu.


BH – My friend, você é um connnoisseur.


AR – Passei anos e anos procurando um disco, um compacto raríssimo do Carlos Pinto, um cara lá de Belém do São Francisco. Ele fez coisas com o [poeta] Torquato Neto. Nesse compacto, de 1973, é ele com o Torquato, Wally Salomão, e a banda base, os Novos Baianos.

BH – Uau!

AR – Fantástico. Paguei uma grana nesse, faz uns quatro anos. Pensei assim: com esse disco não quero saber quanto vai ser, mas quando vai ser. Hahaha. Tem “Três da Madrugada”, gravada pela Gal Costa: “Três da madrugada/ Quase nada/ A cidade abandonada...”. Raridade.


BH – Você tem Arthur Verocai? Ele é muito cultuado lá fora.

AR – Tenho, sim. Agora ele também é bastante cultuado por aqui. Quando ele fez aquele célebre álbum, em 1972, ouvir dizer, a gravadora, na época, derretia as cópias, para fazer novas prensagens do disco dos Secos & Molhados. Ou seja, não deram valor nenhum ao disco do Verocai. O mesmo ocorreu com aquele disco Sessão das 10 – Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (1971): não teve valor à época e hoje também é bastante cultuado.


BH – Interessante o que leva um disco assim a ser valorizado muitos anos depois. Graças à internet, claro. Para o grande público, porém, continua sendo uma coisa altamente obscura.





AR – Tem muitos discos assim. No caso do Paêbirú, a explicação está no fato de o Zé Ramalho ter virado a figura que se tornou. Cito outros que só foram dar valor depois: No Sub-Reino dos Metazoários (1973), do Marconi Notaro; Flaviola & o Bando do Sol (1974). Se você comparar o Paêbirú com o Flaviola, este é muito melhor. Tem gente que não acredita que no Paêbirú é o Zé Ramalho. Ainda teve o lance da enchente, enfim, fatores que ajudaram a tornar esse um disco raro. Veja, o Paêbirú não é um disco comercial. O Sessão das 10, por outro lado, é um disco altamente audível.

BH – Ao chegar do interior....

AR – Hahaha. Essa tocou bastante por aí. Também, era Raul [Seixas], Edy Star, Miriam Batucada, Sérgio Sampaio, só fera.

BH – Você é realmente membro da Grã-Ordem do Vinil.



AR – É muita coisa, muitos anos, muita história. Hoje, nas redes sociais, esse intercâmbio, a troca de informações é muito grande. São muitas referências. Cara, hoje fico feliz de ver uma Cátia de França fazendo turnês mundo afora. Pra mim, não existe mulher como ela na música. Fantástica. Ela, a Dorothy Marques. Figuras que eram consideradas malditas, mas que estavam muito à frente de seu tempo. Agora, têm algum reconhecimento, ainda que tardio.

BH – Legal esse resgate, pois por muitos anos as referências eram sempre as mesmas: Chico, Caetano, Gil, João Gilberto, Bossa Nova....

AR – É referência, né?

BH – Pois é. E parece que você trouxe tudo isso para a sua música.

O vinilista Adriano Rocha no ombro de gigantes
AR – É o que eu ouvia em casa. Muito Clube da Esquina. Mas veja: o mundo não para por aí. Reúno sempre com um grupo de vinilistas, a gente marca encontros uma vez por mês na casa de um, na casa de outro, almoça, só ouve vinil e tal. Mas com outro grupo de amigos, pessoal da música, já não tenho o mesmo prazer. Por quê? Porque os caras sempre querem ouvir Chico Buarque, o de sempre. Eu digo: pô, cara, vamos ouvir Arnaud Rodrigues, outras coisas.... Os caras se fecham.... E tem aqueles que ficam vidrados em instrumentistas da moda, tipo Hamilton de Holanda. Acho legal, mas digo: ei, vamos ouvir Heraldo do Monte, vamos pesquisar.

BH – Isso me leva a concluir que você se mantém como um bom ouvinte musical. Por diversos motivos, muitos músicos parecem querer ouvir somente a própria música.

AR – Acho que sim. Sou mais ouvinte do que músico. Outro dia, o [pianista] José Cabrera, que comandou os arranjos do “Onde tem vagabundo...”, me ligou dizendo que ouviu no rádio “Vou Batê Pa Tu”. Ele queria lembrar do Orlandivo, que assina essa com o Chico Anysio e o Paulinho, digo, o Arnaud Rodrigues.

Orlandivo e as chaves da felicidade
BH – Você tem LP do Orlandivo?

AR – Sim.

BH – Você morou no Rio de Janeiro?

AR – Não. Bahia e Brasília.

BH – E essa influência carioca vem de onde?

AR – Por acaso eu tenho influência carioca?



BH – Acho que no samba. Uma certa malandragem nas letras, referências ao Flamengo, Jorge Ben.

AR – Você deve estar falando isso por causa do disco. Ele tem uma sonoridade anos 1970.

BH – Mas não é retrô.

AR – De jeito nenhum. Acho que nos preocupamos com a timbragem, o tipo de som.

Pianista e arranjador José Cabrera

BH – Você falou no Cabrera. Nesse disco ele toca um piano Fender Rhodes? É bem típico dos anos 1970.




AR – Sim. Nesse trabalho procurei trazer essas referências, as coisas que gosto. Admiro muito a banda Black Rio. Sou fã do [falecido] saxofonista Oberdan Magalhães. Ele teve um projeto, em 1968, chamado Cry Babies, instrumental. Muito groove, sensacional.

BH – Falando nisso, tem um quê de Jorge Ben Jor nesse disco. Por favor, tome isso como um elogio.



AR – É outra referência. Admito. Um disco de samba-rock que não passar por Jorge Ben..... Não sei, não. Esse gênero é demais. Gosto muito de Ângelo Antônio. Ângelo Antônio & As Menininhas. Esse cara era muito bom, e se foi precocemente. Falamos do Orlandivo. Não posso deixar de mencionar o Téo Azevedo, que tem uma história muito boa. Mineiro, esse cara toca viola caipira. Em 1972, ele ganhou na loteria e fez um disco de samba-rock. Tinha uma cabeleira gigantesca. Esse disco é raríssimo. Foi até reeditado agora.



BH – Você tem esse?

AR – Tenho.

BH – Onde conseguiu essas coisas?

AR – Ih, meu irmão. Por aí. Isso é uma luta. Agora estão reeditando essas coisas raras, que só colecionador sabe o valor que tem. Não sou fechado às reedições.

BH – Esses LPs são caros pra caramba.

AR – Caros são os antigos. O Maria Fumaça (Banda Black Rio), original, por exemplo, sai por uns R$ 800,00, R$ 1 mil. A reedição em vinil você encontra por R$ 120,00, por aí. Não é a mesma coisa, mas resolve. Algumas reedições são muito boas. Mas nem todas são assim. Já ouvi algumas reedições em vinil do Jorge Ben, mas não gostei. Sei lá, alguma coisa se perdeu. Por outro lado, tenho algumas reedições do Tom Zé que são excelentes.



BH – Todos Os Olhos: você tem o original ou a reedição?

AR – O original.

BH – Uh!

AR – O Correio da Estação do Brás, o que tenho é reedição e me satisfaz.



BH – Seu disco é creditado a Adriano Rocha & A Catraca. Por quê?

AR – É o seguinte. Sou um tanto avesso a essas coisas de mídias sociais, Face e tal. Digamos que agora que eu estou entrando nessa. Ainda não estou no Spotify, Deezer. Mas sei que preciso estar nas plataformas, fazer o disco ficar disponível. Questão de organização. Mas o nome veio porque se você digitar Adriano Rocha no Youtube, por exemplo, vai aparecer um monte de gente com nome similar. Mas se digitar Adriano Rocha e a Catraca, cai em cima! É o pessoal que vai me acompanhar.

BH – Você tem material para outros discos?

AR – Sim. Tenho bastante coisa.

BH – Aliás, o CD, o material físico vai virando raridade hoje em dia, concorda? Ninguém quer mais CD. LP, tudo bem.

AR – É verdade. Ano que vem, gostaria de lançar esse disco em vinil.

BH – Bota umas faixas bônus nele, hehehe.

AR – Sim, vai ser lançamento independente. Sei que fazer é muito caro. Mas é engraçado ter feito esse CD. Isso é uma coisa que eu não uso, digo, não compro CD e nem escuto esse tipo de mídia. Também não tenho Spotify, essas coisas. Quando estou em casa, é só na agulha, hahaha.

BH – Considero esse um fenômeno muito esquisito. As pessoas se contentam em ouvir música no telefone celular, aquele sonzinho que lembra os antigos radinhos de pilha. Bons tempos em que era um hábito ter toca-discos, amplificador, caixas acústicas. A música era outra experiência. Como dizia o Chico: Ela vive vidrada nos sucessos do rádio de pilha....



AR – Que maravilha..... Hahaha. Essa é a “Flor da Idade”.

BH – A propósito de Chico, tem algo de perspectiva feminina em suas letras. Ou estou enganado?

AR – Se você observar, a última faixa do disco, “Porta-Bandeira” é na perspectiva feminina: Eu que não xingo/ Às vezes sou xingada/ Eu te respeito/ E sou desrespeitada. Em “Mulher do Século XXI”, também essa perspectiva. Sabe aquela história, quando perguntam para a mulher: ei, cadê o pai desse menino? A mulher diz: saiu pra comprar cigarro.

BH – Você está dizendo isso agora. Não pensei exatamente assim, o ponto de vista feminino. Nessa acho que fiquei mais ligado no linguajar tipicamente brasiliense: E vou pegar o beco.... Ouve-se muito essa expressão em Brasília, talvez porque aqui beco é o que não falta.

AR – A mulher do século XXI também fala essas coisas. Ela manda um f*da-se e diz que vai pegar o beco.

BH – Onde entra o jazz na tua história?

AR – Gosto muito do jazz brasileiro. Edison Machado, Vitor Assis Brasil. Acho que por não falar inglês, acabei ficando mais ligado no som, daí a preferência pelo instrumental. Gosto de Beatles, Bob Dylan, Joan Baez. Tive um momento, na adolescência, em que ouvia som pesado, fui metaleiro. Pink Floyd, não. Acho que é uma música sem virilidade, hahaha. Quer viajar? Viaja ouvindo Molhado de Suor, do Alceu.

BH – Pegou pesado, irmão. Você é um grande conhecedor de MPB. No que se refere ao rock, consta que você admira Legião Urbana. Aliás, todo mundo gosta de Legião. O que o rock representa pra você?

AR – Considero a descoberta do rock uma parte interessante da minha vida. Sobretudo nos anos 1980. Gostava de alguma coisa, não tudo. Até hoje tem coisa [do rock] que não entra. Ouvia Legião, Cazuza, Paralamas. Elomar foi o cara que me tirou do rock.


BH – Elomar Figueira de Melo. Você foi fundo agora.

AR – Com 17 anos ouvi Elomar: Na Quadrada das Águas Perdidas.

BH – Esse disco é do carvalho.

AR – Lembro que cheguei bêbado em casa. Meu pai tava ouvido o Cantorias. Daí começou a tocar: Da Carantonha mil léguas a caminhar..... Aquilo me pegou. Depois fui procurar onde estava aquele som. Que voz! Que violão! Tanto que, quando cheguei em Brasília, em 1995, eu era mais radical. Na noite, só tocava Elomar, Geraldo Azevedo....

BH – No rock, o que era mais atraente, a música ou as letras?

AR – A poesia. Com 13, 14 anos, eu era muito fã do Cazuza, ouvia Legião, aprendi a admirar as letras desses artistas. Fico pensando. Hoje em dia não dão valor para essas coisas. Atualmente, um jovem que acabou de formar em medicina está ouvindo umas coisas que, pelo amor de Deus....

BH – Bem, esse é um drama cultural brasileiro, talvez mundial. Referências culturais. Em termos comparativos, fico tentado em dizer que atualmente é pior....

AR – É pior, sim. A música considerada ruim de antigamente era diferente. Digamos, um Marquinhos Moura, que era superpopular, mas tinha seu valor.



BH – Biafra. Que no final das contas era muito legal.

AR – Putz, cara. Compara com a música de hoje.... Não dá, né? Estamos falando de coisas de 30, 40 anos atrás. Se analisar, aquela era uma música bem-feita, muito superior ao que se faz atualmente.

BH – Bem, dizem que a música popular, a canção popular, é retrato de uma época, é reflexo de seus dias. Logo....

AR – Por isso que a gente está desse jeito.

BH – Tomara que alguma coisa aconteça. Estamos vivendo um período traumático em muitos sentidos para a sociedade brasileira. Tá phoda! Com PH bem grande.

AR – Não dá, né? Talvez o Brasil precise passar pelo que estamos passando. Mas imagina tirar agora do poder o tal do Bolsonaro. Assume o vice. Não vai mudar muita coisa. Digo que o país não vai ter aprendido muita coisa.

BH – Cacete, meu irmão. Tá muito difícil para a cultura, esses caras são só asneira. As cidades deteriorando, a violência e a miséria crescendo. Abriu um abismo na desigualdade. O desemprego está barra pesada. Até quando esperar?

AR – Por aí. Hoje, o pobre não anda mais de avião.... Mas uma hora a ficha vai cair.

BH – Só vejo a juventude sendo maltratada. Essa situação vai gerar um monstro. Não é possível que esse país assista a tudo passivamente....

AR – Sim. Um dia a conta chega para o povo. Nosso Brasil sempre tem muito o que aprender.




PS - Adriano Rocha é destaque na revista Roteiro Brasília, edição de agosto de 2019: