segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O caso Roger Waters

Músico britânico, em turnê pelo País, acabou envolvido pelo delicado momento eleitoral brasileiro

Não há considerações gerais a fazer
Tá tudo aí... Tá tudo aí
Para quem quiser ver
(Baiano & Os Novos Caetanos – Tributo ao Regional)

Não deveria haver, mas aqui, espaço de expressão, vai uma pensata. Thank you, democracia.



A gente fica procurando um ponto de apoio diante de inevitável queda. Algo que segure a pessoa em pé e a faça pensar que, por um momento, tem-se o controle da situação. Traduzindo: é mais do que necessário ter atitude filosófica, serena, zen, diante de muitas tormentas que sempre estão por vir. No plano pessoal, no trabalho, onde for.

Atitude filosófica, agir com razão, ao invés do impulso instintivo da emoção, parente do desespero, que invariavelmente traz um monte de problemas, a começar pelo descontrole emocional e que, no coletivo, descamba para o quadro que estamos (infelizmente) nos acostumando a ver. Isso, ódio, violência e congêneres, bombando nos trending topics, o medidor de presença e marketing da internet.

Jorge Luis Borges (1899-1986)
Como o que pensa, não como o que reza, diria J.L. Borges.


O ponto de apoio menciona a canção dos Baiano & Os Novos Caetanos (genial criação das antigas, de Arnaud Rodrigues e Chico Anísio), cujas frases autoexplicativas, trazidas em contexto, falam com eloquência do momento brasileiro, considerando (hehehe) que estamos a poucos dias das eleições de 2018.

Display anuncia Roger Waters em Brasília, outubro de 2018
Mas este é para falar da presença de Roger Waters no Brasil, cuja turnê Us + Them passa por sete cidades brasileiras, neste tórrido outubro de céu soturno ao sul do Equador. Em verdade, o sol não está nem aí pra ninguém.

O cara do Pink Floyd, Rogério Águas em pessoa, que gerações de roqueiros tem na mais alta consideração (ops) e estima, passando no pedaço e matando a fome de Pink Floyd. Tóim, eis a palavra mágica.

Wright, Waters, Mason, Gilmour: Pink Floyd

Há muitos anos que é assim, basta a menção do nome Pink Floyd para que uma série de coisas explícitas e implícitas venham ao espelho d’água, boias (ou ilhas) que emergem, chances únicas para quem se vê engolfado por ondas. O afogamento é sempre eminente, não basta saber nadar. Ouvir (e ver) Pink Floyd sempre será algo pra lá de arrebatador, dado o tamanho da experiência sensorial que representa.

The Dark Side of The Moon (1973)
Nos tempos em que os aparelhos de som (hi-fi stereo) eram assim chamados, a curtição era ouvir (o disco) The Dark Side of The Moon (1973) com fones de ouvido. Uau. Aquilo sim era experiência aural, experiência sensorial. As vozes, sons, música, tudo viajava de um ouvido ao outro, o efeito estereofônico ativando áreas cerebrais, que muitos não imaginavam ser possível. Em resumo: uma viagem plenamente possível, na poltrona, no chão, na cama, no carro, enfim. Dizem que até as vacas ouviam Pink Floyd numa boa e, por causa disso, produziam mais e melhores leites.

Atom Heart Mother (1970)
Jornal Folha de SP, 11 de outubro de 2018
Do noticiário vem as informações de que a passagem de Roger Waters pelo Brasil começou um tanto conturbada, nas primeiras duas datas em São Paulo. Fatores extramusicais. Ao relacionar o nome de certo candidato à Presidência no rol de novos fascistas no planeta e também propagar certa hashtag usada como símbolo de repúdio ao mesmo indivíduo, Roger atraiu a inusitada ira de fãs que pagaram (e não pagaram pouco) para vê-lo tocar os clássicos do Pink Floyd e, tudo bem, de quebra músicas assim não tão conhecidas de sua carreira solo.



Wait a minute. Quem vaiou? Concertgoers, brothers and sisters. Como dito anteriormente, fãs que pagaram (e não pagaram pouco) para vê-lo tocar clássicos do Pink Floyd e coisas de sua carreira solo.

Mas, mais vaiaram do que apoiaram a mensagem? Não há como medir, e talvez isso não seja possível. No caso dos shows na capital paulista, há relatos de que o ex-Pink Floyd teria ficado bons 5 minutos em silêncio, no palco, enquanto a plateia ganhava ares de turba, em reação à provocação colocada no telão de imagens, aliás, atração sem igual da turnê Us + Them.

Roger Waters em Brasília, 13 de outubro de 2018



“Vocês têm uma eleição importante. Sei que não é da minha conta, mas devemos sempre combater o fascismo. Não dá para ser conduzido por alguém que acredita que uma ditadura militar pode ser uma coisa boa”, teria dito o músico britânico, alvo então de novas vaias, como se tivesse piorado a situação.

A mídia relata que a reação de 40 mil pessoas, no Allianz Parque (o estádio do Palmeiras) transformou o show em uma balbúrdia, com claro enfrentamento de slogans: “Ele não” versus “Fora PT”, para resumir a batalha de palavras que emprestam significado ao momento brasileiro, 2018, e que, naquela hora, encontrou combustível ideal para explodir.

O resto segue bastante documentado na mídia, nas redes sociais, onde mais o assunto tenha ganhado relevância. Tonitruante é acompanhar os comentários a respeito, típico da polarização política vivida no País. Houve quem tivesse ameaçado denunciar o músico à polícia, fora relatos e vídeos postados na rede, nos quais os “fãs” reclamam da atitude do baixista do Floyd por estar se intrometendo onde não deve. Em geral, com a defesa do ponto de vista de que o músico não é brasileiro e, portanto, não teria o direito de se manifestar sobre assuntos internos do Brasil. Em um certo vídeo, um sujeito resume a situação vivida no Allianz Parque, dizendo: “Porra, ele cagou o show!”.

Em autocensura, Waters ironiza a situação
Óbvio que tamanha polêmica tenha suscitado as explicações por parte dos analistas de plantão. No geral, os esclarecidos correram em dizer que, com Roger Waters, as coisas são assim mesmo.

Donald Trump, retratado em Pigs
Dos Estados Unidos vem relatos de que a presença do presidente Donald Trump em tom jocoso, como retratado por Waters, provocou reação semelhante a vista em São Paulo, com muita gente vaiando as apresentações, ou mesmo se retirando das salas de concerto. Até famosa marca de cartão de crédito norte-americana teria retirado apoio publicitário à turnê, dado o alto teor de polêmica e mal-estar provocados. Ganhar dinheiro e causar confusão são coisas que, aparentemente, não combinam.

Waters: mensagem curta e grossa, com endereço certo
Novamente, os analistas vieram ao auxílio dos necessitados, dizendo, em resumo, que basta acompanhar a carreira de Waters, com e sem o Pink Floyd, para sacar que a mensagem dele sempre foi essa: um soco na cara do establishment, uma crítica à ordem mundial de ganhar dinheiro para ser feliz, enfim, o ser humano subjugado pelo sistema. Basta que se critique o capitalismo para ganhar o rótulo de esquerdista, comunista, as duas coisas ou algo semelhante, não é verdade?

Dentre tantas coisas incríveis relacionadas aos episódios da passagem de Waters pelo Brasil, há que se destacar a situação provocada pelos que não gostaram de ver candidato da preferência relacionado ao lado escuro da força. Talvez para esses críticos, o tal candidato não seja violento e nem pregue a violência. Apenas é o cara durão, que não vai dar mole aos bandidos e corruptos, nas ruas e nos palácios públicos. Um cara família, com Deus no coração, um paladino da justiça, que vai varrer a cor vermelha do arco-íris, aliás, vai mudar as cores do arco-íris, bem ao estilo dos que imaginam um super-herói resolvendo os problemas, ou simplesmente aquele que mantém limpas as ruas por onde passamos.

Getúlio Vargas (1882-1954)
Na verdade, um enorme problema de concepção de democracia, pois desde Getúlio Vargas, há entre muitos brasileiros a crença simplória de que o presidente da República tem poder discricionário ilimitado, podendo prender e arrebentar quem quiser. Basta que um decreto vindo do Palácio do Planalto resolva a situação, qualquer situação. Em contraponto, há o argumento de que está escrito na Constituição que três poderes nos governam. Nossas vidas são regidas pelas decisões do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Olha, isso não vem ao caso, assim dizem os comodistas, crentes e sedentos por soluções heroicas.

Algo como um pensamento mais ou menos assim: você governa e me ajuda a viver e ganhar dinheiro, afinal pago impostos. Se não for dessa maneira, é um inútil, fora daqui!

Armado como John Wayne
Para esses, o que há de errado em permitir ao cidadão andar armado? Também parece não haver nada de errado em tratar o aborto como caso de polícia, discriminar minorias, pobres, gays, ser contra a união homoafetiva (família só a tradicional, afinal isso é bíblico). Isso tudo é falta de amor à pátria, ninguém canta o hino nacional nas escolas, muito menos tem apreço pelos símbolos nacionais. Legalizar a maconha? Nem pensar. Ela é a origem de todos os males. E de onde vem tanto coisa negativa? Do PT, antro da roubalheira, e a ameaça comunista, com certeza, ora bolas.

Waters, como o cantor-ditador em The Wall
Voltando às considerações, não há porque ficar estarrecido com Waters, pois o Pink Floyd sempre bateu nessa tecla. Principal letrista do grupo, Roger Waters em outros momentos criticou a geopolítica da guerra (“Us and Them”), o capitalismo (“Money”, “Pigs”), o negócio da música (“Welcome To The Machine”, “Have a Cigar”), a aniquilação do indivíduo (todo o “The Wall”), até chegar ao atual momento representado pelas mensagens repletas de humanismo nas letras de seu mais recente álbum de inéditas, “Is This The Life We Really Want?”, lançado em 2017.


Incrível que o fã brasileiro, sabendo do que se trata, tenha tido a reação registrada. O episódio aponta até para problemas linguísticos, considerando o fato de nós brasileiros não termos o inglês como língua materna. Parece assim que a pessoa ouve Pink Floyd há séculos, mas nunca procurou entender o sentido das letras, apenas se deixou levar pelo som.



Nas redes sociais, ironias a quem nunca entendeu Waters e o Pink Floyd
Mais ainda, quem esbravejou nos estádios parece ter agido como ingênuo, incauto, cobrando retratação do artista por ter ofendido candidato, no que seria clara demonstração de interferência em nossos processos, assuntos internos que não dizem respeito aos estrangeiros. Ai, ai....

Eis a principal mensagem que fica
Agora, falando da música, aliás, do espetáculo musical, Waters mantém intacta a mística em torno do nome Pink Floyd. Tudo surpreende, a começar pelas canções de forte impacto emocional e que assim permanecem por décadas. Tudo tem qualidade, a cenografia, o som, os músicos, as mensagens. Tudo naquela impecável embalagem que ultrapassa muros, os reais e os imaginários que estamos sempre construindo. Em Brasília não foi diferente. Os bleeding hearts e os artistas saíram comovidos.

Waters manda um thank you, Brasília