sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O piano vermelho

O piano vermelho
Rogério Resende, técnico-afinador de pianos
Resumo: Rogério Resende, técnico-afinador de pianos baseado em Brasília, Distrito Federal, lançou-se ao desafio de restaurar um piano de cauda Essenfelder (1971), em oito dias. O resultado: um belo piano vermelho, como provavelmente nunca visto antes.



Preâmbulo sobre pianos, antes de falar do Rogério Resende.

Restaurar instrumentos musicais é arte tão antiga quanto a construção dos objetos e máquinas que produzem sons eufônicos ou não eufônicos na forma de música. Certamente a primeira flauta de osso ou madeira que caiu no chão e rachou recebeu um reparo qualquer para voltar a ter as propriedades que originalmente lhe foram conferidas por quem a concebeu.

Com o passar do tempo, a história é farta em exemplos, o artesanato virou manufatura, a evolução de materiais, ferramentas e máquinas, por fim, a tecnologia, deram à humanidade condições de sofisticar o trabalho e produzir mais e melhores utensílios, conforme a necessidade se apresentava.

Piano Fazioli, Modelo F308: US$ 250,000,00
Muito bem. Fechando o foco em pianos, o rei dos instrumentos musicais, temos o engenho humano em um refinamento técnico de construção dos mais sofisticados já vistos.

Responda rápido: que outra máquina produzida nos séculos 18 e 19 ainda se encontra em perfeito estado de funcionamento e conservação, como os pianos? Uma locomotiva a vapor ainda em uso? Uma ou outra, e para curtas distâncias. Um relógio? Bem provável. Pois saibamos nós que, muitos pianos fabricados em priscas eras - os assim denominados pianos antigos – ainda hoje soam perfeitos, desde que bem conservados, óbvio. Receberam reparos modernos? Dependendo ao que a questão se refere, sim, devem receber. Mas desde que não tenham estruturas e nem características alteradas. Que o projeto original seja sempre respeitado. Soam talvez melhores hoje, partindo do princípio de que nasceram como bons projetos e passaram pelas mãos certas.

Display afixado no Museu Itinerante do Piano, Brasília (DF)
Embora a história da música ocidental registre a ocorrência de projetos de instrumentos de teclas e seus inventores, como no século XV, atribuídos ao astrônomo e organista francês Henri Arnault de Zwolle (1400-1466), a fabricação de pianos tem como marco o invento pianoforte, do construtor italiano Bartolomeo Cristofori di Francesco (1655-1731). Em relação aos atuais, o piano de Cristofori (também conhecido por gravicembalo) é um pouco diferente em tamanho (teclado de 53 teclas, contra as 88 atuais) e em componentes, com o conjunto mecânico mais simples e com quadro de madeira, ao invés do forjado em metal.

Bartolomeo Cristofori, inventor do piano

Por volta de 1700, enquanto contratado da corte do príncipe Ferdinando de Medici (1663-1713), na atual região da Toscana (Itália), o fabricante de cravos Bartolomeo Cristofori desenvolveu o pianoforte como instrumento de teclas que conseguia emitir sons fracos (pianos) e fortes, ressonâncias obtidas pelo uso de martelos de madeira, que percutiam em cordas metálicas dispostas dentro do instrumento. O conceito permitia ao executante tirar esses sons mais fortes ou fracos (piano), conforme a intensidade com que as teclas eram pressionadas.

Piano de Cristofori, exemplar do Metropolitan Museum of Art, New York City, USA 

Teclado e mecânica do piano de Cristofori (Met Museum of NY)
Foi um avanço e tanto, uma vez que à época o instrumento de teclas dominante era o cravo (harpsichord), de dinâmica sonora limitada. Nos cravos, as teclas acionam plectros (feitos a partir do eixo de penas de aves – as melhores, de corvos), que beliscam as cordas.

Desenho de homem tocando cravo, cerca de 1750

Clavicórdio, segundo J. Hass, 1763
O clavicórdio era outro instrumento de teclas bastante utilizado. Apesar de usar o princípio de bater nas cordas (ao invés de dedilha-las), o som era obtido com pequenas peças metálicas na forma de cunha que tangiam as cordas acionadas por teclados. Nem o cravo nem o clavicórdio eram capazes de emitir sons graves. Bater em bordões com martelos de couro, isto sim, produzia sons graves, que logo caíram no gosto de compositores, executantes e plateia. Ou seja, os baixos são essenciais. Eles aquecem a melodia.

Dizem os registros que, por volta do final do século 18, a música de teclados era dividida em três tipos de instrumentos, todos distintos dos atuais pianos: o cravo, o clavicórdio e o pianoforte (hammeklavier, na nomenclatura alemã). O último, logo haveria de se sobrepor aos demais.

Diagrama da ação de moderno piano de cauda
Quadro de madeira x quadro metálico
A arte de fabricar pianos, portanto, perdura por mais de 300 anos e parece não haver sinais de que esse instrumento venha a cair em desuso ou desaparecer. Após Cristofori, os pianos receberam inovações, como a melhoria da ação, isto é, do mecanismo que faz os martelos percutirem as cordas e voltar à posição de descanso; e a introdução do quadro metálico que possibilitou maior tensão às cordas e, por conseguinte, a possibilidade de maior amplitude sonora.

Vistos como máquinas, os pianos evoluíram com os avanços de novas técnicas industriais introduzidas ao longo do século 19. Os quadros metálicos, por exemplo, permitiram ao instrumento ficar mais tempo sem desafinar. Em menos de 100 anos do invento de Cristofori, os pianos já possuíam teclados com 5 oitavas e meia e prosseguiam sofisticando, em grande período de experimentação por parte dos construtores. Mais cordas, melhores tonalidades. Precisão, a palavra-chave. O padrão atual é de 88 teclas e sete oitavas.

Rogério Resende, família, equipe da Casa do Piano e o Essenfelder restaurado
Com esse pano de fundo chegamos, finalmente, ao assunto dessa publicação. O técnico-afinador de pianos Rogério Resende, um raro especialista do ramo, baseado na região de Brasília, Distrito Federal, documentou a restauração de um piano de cauda (Essenfelder, brasileiro), construído em 1971. O resultado revela um fino trato e, de fato, um raro ofício, como o praticado pelos melhores luthiers de instrumentos musicais.

Aliás, Resende prefere ser chamado de técnico-afinador e há razões para tanto: “A literatura musical define o luthier como aquele que trabalha na construção e reparo de instrumentos de cordas. Luthiers de violão, de violino, por exemplo. Não temos exatamente um luthier de pianos. Mas se quiserem assim chamar, não tem importância. Para mim, técnico-afinador conjuga melhor minha especialidade, a de reparador, construtor e afinador de pianos”.

Fachada da Casa do Piano, Brasília (DF)
Assim, debaixo dessa humildade, Resende abriu as portas de sua oficina, a Casa do Piano, na periferia de Brasília, para mostrar como restaurar um piano (na verdade, como ressuscitar um piano) e deixa-lo no ponto à altura de um bom instrumento. Detalhe: tudo feito no exíguo prazo de 8 dias!


Piano Essenfelder, 1/4 de cauda, 1971, antes da restauração
Em oito dias, o Essenfelder  1/4 de cauda, ganhou mais que uma nova pintura, cordas e novíssimos martelos de feltro feitos na Alemanha. Ganhou dignidade, como costuma afirmar Resende, ao se referir ao resultado satisfatório do trabalho realizado em cada piano que passa por suas mãos.

Como fazer um piano vermelho

Rogério Resende avalia o Essenfelder, 1971
Primeiro, o instrumento passa por uma avaliação com “olhos de águia” (onde nada escapa). Os bons técnicos-afinadores sabem que esse é o primeiro passo a ser dado, a fim de sanar dúvidas e não gastar recursos em vão em torno de um instrumento que não mereça o trabalho.

Rogério Resende comenta: “Muitas vezes, sou chamado para consertar ou restaurar pianos que não valem a pena o gasto. Sempre falo para os clientes dessas possibilidades. Não adianta gastar dinheiro com um instrumento que nunca foi bom desde a sua construção. As pessoas têm ligações afetivas com pianos, que em muitos casos estão há anos com alguma família. Ocorre que, nas avaliações ficamos sabendo se vale a pena ou não gastar com esse ou aquele instrumento”.

Melhor comprar outro piano do que gastar em vão, esse é um grande ensinamento. Mas, superada essa parte, quando o piano vale o esforço, mãos à obra.


No caso do Essenfelder, o exemplar fabricado há 47 anos, em Curitiba (PR), ainda que não seja considerado um grande projeto de piano, reunia as tais condições de restauro. Em todo esse tempo, o Essenfelder fora afinado diversas vezes, mas já não podia ser tocado como antes. Os pedais estavam quebrados, a ação mantinha do tempo de sua fabricação os mesmos martelos de feltro, os mesmos discos de feltro e de papel sob as teclas, as mesmas partes de couro e tecido. Tudo gasto pela ação do tempo e por visitantes indesejáveis, as traças.

Desmontagem do piano Essenfelder
Desmontagem da mecânica
Detalhe da tábua harmônica rachada
Retirada das cordas
Retirada das cravelhas
Na desmontagem, foram desparafusadas as tampas, os pedais; retirados o teclado, o mecanismo, as cordas, as cravelhas, e o quadro metálico, até chegar na tábua harmônica, de pinho araucária (piano feito pela Essenfelder, hoje extinta, uma indústria baseada no Paraná). Essa parte onde vibra o som estava visivelmente rachada, mas não condenada, o que possibilitou uma nova colagem de lascas de pinho entre as frestas.

Frestas cobertas por lascas de pinho
Por sorte, o Essenfelder não foi visitado por cupins. Como dito, apenas o uso e a ação do tempo agiram em sua deterioração. “Traças comem partes de feltro e papel, que são perfeitamente substituíveis. Mas se o piano estiver infestado de cupins, há então um comprometimento em sua estrutura de madeira. Em muitos casos, o destino desses pianos é o fogo, pois nada se aproveita”, afirma, sem piedade, Rogério Resende, o exterminador de pianos maltratados.

Discos de feltro e papel comidos por traças

Confecção dos bordões em aço e cobre sem verniz
Detalhe de um bordão em aço e cobre
Na Casa do Piano, Resende fabrica na medida o encordoamento metálico com aço alemão específico para cordas de piano. O cobre dos bordões não tem verniz, o que deixaria o som opaco. Aliás, a máquina que produz as cordas é um capítulo à parte. Trata-se de engenhoca concebida pelo técnico-afinador, com motor e parte de uma grade de portão. Sua eficiência e precisão conferem alta qualidade técnica na confecção manual de bordões e cordas encapadas com cobre.

Mecânica refeita à mão, peça por peça
Martelos alemães, novos em folha
Teclas limpas e polidas
A mecânica, meticulosamente refeita, com martelos alemães e colagem manual de tiras de couro e tecido deixam todo o conjunto em condições de ser regulado. Esse trabalho, feito em conjunto pela família Resende, que toca a Casa do Piano, é digno de nota. A regulagem obedece a padrões de sintonia fina, digna dos relojoeiros e ourives. O quarentão Essenfelder aos poucos vai ganhando cara nova. Em verdade, vai tendo renovado todos os seus componentes, pois teve metais limpos e polidos; as teclas são coladas onde precisam, e limpas para voltar a ter aquele preto e branco (o ébano e o marfim) reluzentes. Ébano e marfim, maneira de dizer, pois há muitos e muitos anos o plástico substituiu esses dois materiais nos pianos.

Pintura em estufa





Quadro metálico pintado de branco



Novos abafadores, cravelhas e cordas metálicas
Encordoamento em fino acabamento
O resultado, como visto, ficou uma joia. Por acaso o visitante já tinha visto um quadro metálico branco? Em um piano vermelho, com banqueta vermelha? Parece aqueles pianos extravagantes que o Liberace exibia. Na verdade, os pianos do Liberace eram mais extravagantes.







Ao final do oitavo dia, com o piano pronto e afinado, Rogério Resende não encerrou o desafio. Começou o difícil trabalho de dar “voz” ao piano. Isto é, começou a balancear nota por nota, pois não basta que o instrumento apenas emita a nota corretamente. Ela tem que estar em “consonância” com as outras, nem que para isso seja preciso desafinar o piano.




Como assim, desafinar? Em afinação, consonância precisa estar entre aspas. Os verdadeiros afinadores de pianos – como Rogério Resende, em verdade desafinam, ou melhor, temperam os instrumentos. Questão de intuição em ciência não exata. Mas este é assunto para outro dia.

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