quarta-feira, 30 de março de 2016

Last but not least ou antes que eu esqueça

Embaixada do Brasil, em Bridgetown (Barbados)
No prédio da embaixada do Brasil, em Bridgetown, capital de Barbados, lê-se na placa à esquerda: Hy Brasil.
Embaixada de Hy-Brasil, em Bridgetown (Barbados)
Mario Vargas Llosa romanceou a vida de Roger Casement, em "El Sueño del Celta", publicado em 2010, ano em que foi laureado com o Nobel de Literatura.





terça-feira, 29 de março de 2016

Roger Casement no Breazáil II

"...all the mysterious life of the wilderness that stirs in the forest, in the jungles, in the hearts of wild men. There's no initiation either into such mysteries. He has to live in the midst of the incomprehensible, which is also detestable. And it has a fascination, too, that goes to work upon him. The fascination of the abomination - you know, imagine the growing regrets, the longing to escape, the powerless disgust, the surrender, the hate".

Joseph Conrad - Heart of Darkness

Roger Casement no Brasil
A surpreendente ligação do herói irlandês Roger Casement (1864-1916) com o Brasil parece ir além dos episódios chocantes de sua atuação como diplomata estrangeiro que denunciou toda sorte de absurdos cometidos contra os povos indígenas, na loucura que se seguiu à exploração da borracha, em solo amazônico, no início do século XX.

Dr Angus Mitchell

Igualmente surpreendente e nebuloso foi o seu papel no desmonte do ciclo econômico da borracha na região. Como notou o historiador Angus Mitchell, no livro "Roger Casement no Brasil - A borracha, a Amazônia e o Mundo Atlântico - 1884-1916", ficou o enigma, uma vez que o antigo cônsul britânico no Brasil - em que pese o papel fundamental na defesa dos direitos das populações indígenas - atuou no sentido de interromper a maneira como a borracha era explorada na Amazônia.

Julio Cesar Arana
Os ingleses, óbvio, não queriam mais a exploração da borracha nas mãos de um barão sanguinário como o empresário e político peruano Julio Cesar Arana (1864-1952), que comandava a Peruvian Amazon Company (PAC), vejam só, com o capital britânico. Isso era péssimo para os negócios, porque uma eventual condenação em corte internacional ensejaria uma volumosa quantia de dinheiro como compensação das populações afetadas.

Quando enviaram Casement para relatar os casos escabrosos de exploração na região do Putumayo, os ingleses já sabiam que não era possível manter a produção de borracha na selva amazônica, numa situação que fugia completamente do controle e que acabava comprometendo toda a cadeia produtiva.

Seringueiras
Nativa da região da bacia do Rio Amazonas, a Hevea brasiliensis foi levada estrategicamente pelos britânicos para o solo asiático, onde se adaptou muito bem às condições oferecidas em lugares como a Malásia e o Sri Lanka. E o melhor: sem essa de escravizar índios preguiçosos.

The world has a new hero
"Seu tempo no Brasil foi decisivo para sua própria evolução e transformação de imperialista em revolucionário", afirma Angus Mitchell, para quem Casement foi muitos: o diplomata aplicado, agindo em nome dos interesses da Coroa; o ser humano altruísta e sensível com a situação de penúria a que estavam expostos seus semelhantes e, secretamente, o ativista subversivo e patriota irlandês que enxergava e se indignava com a exploração sem fim do Império Britânico. No Congo e na Amazônia, Casement se preparou para o epílogo surpreendente de sua vida, quando decidiu largar tudo e aderir à causa irlandesa, que culminou com sua execução por enforcamento, em 1916.

Casement chega a Corte de Justiça, em Londres (1916)



Alta Traição 1916 - O Recurso de Roger Casement, quadro do pintor irlandês Sir John Lavery
Nas longas cartas que escreveu ao longo de sete anos de trabalho no Brasil, Roger Casement abordou inúmeros aspectos da vida no país, como era de se esperar de um diplomata em serviço em um país estrangeiro. Em Santos, Belém e Rio de Janeiro, locais onde atuou, o diplomata lançou esse olhar estrangeiro sobre a vida brasileira, em observações que iam dos esclarecimentos técnicos ao aborrecimento e ao encantamento com as coisas deste país.

A parte mais interessante, que estabelecia uma ligação direta com sua Irlanda, está contida em texto no qual discorre sobre as origens do nome Brasil.


"[...] O nome Brasil é, provavelmente, o nome de mais doce som que qualquer grande raça da Terra já possuiu. O modo pelo qual esse nome sonoro passou a ser atribuído ao grande país da América do Sul não havia me interessado até o momento seguinte de meu desembarque em Santos, no outono de 1906...".


Pau-brasil (brazilwood) (Caesalpinia echinata)
Casement afirma que há um erro consagrado em atribuir o nome do país à árvore pau-brasil, tal qual disseminado no senso comum e na literatura: "Nenhum escritor jamais foi além disso: apesar de que alguns já estiveram no limiar da verdade, sem o saber. Pois não há dúvida nenhuma de que, ao derivar o nome Brasil da madeira Pau-Brasil do comércio medieval, o livro escolar, o indivíduo brasileiro, a enciclopédia e os dicionários estão todos errados".

"[...] Por mais estranho que possa parecer, o Brasil não deve o seu nome à abundância de certa madeira Pau-Brasil, mas à Irlanda. Acredito que a honra de nomear o grande país sul-americano pertence, seguramente, à Irlanda e a uma antiga crença irlandesa, tão antiga quanto a própria mente Celta".


Roger Casement adentra aqui em solo fantástico. Sua referência é a lenda da Ilha Brasil, ou Hy-Brasil, mítico pedaço de terra situado a oeste da Irlanda, no oceano Atlântico. Segundo a lenda, essa ilha vive envolta em névoas e só é vista uma vez, a cada sete anos, porém permanece inatingível.



Hy-Brasil também é chamada Hy-Breasal, Hy-Brazil, ou Hy-Breasil. A imagem central na bandeira brasileira, o círculo com a faixa branca, seria o símbolo de Hy-Brasil que aparece em antigos mapas. Nessas referências míticas, tão antigas quanto as origens do povo celta, a ilha lembra o mito de Atlantis: é o lugar de rica civilização avançada, a Terra Prometida.

Ilha Breazáil, em mapa da Europa, 1375
Ilha Breazáil, no mapa de Piri Reis, 1513
Detalhe da Ilha Brasil, no mapa de Piri Reis

Ilha Breazáil, no mapa de Abraham Ortelius, 1595
Antes mesmo da "descoberta" do país, em 1500, pela esquadra do navegador português Pedro Álvares Cabral, o nome Brasil já era visto em mapas medievais. No século XV, o nome Brasil aparece deslocado para a região dos Açores, que chegou a ser grafada como Ilha Brazil.

Saint Brendan of Clonfert
Como um nome celta acabaria batizando um país em um continente tão distante? Na mitologia celta, o nome provém de Bres, filho de Ériu, cujo pai é Eletha, um deus fomoriano. Bresil seria um reino mágico, nem tanto mar, nem tanto terra, os dois.

Estátua de São Brandão, em Fenit Harbour, Tralee (Irlanda)

O nome Brasil aparece nos escritos de São Brandão (Naomh Breandán), o Navegador, monge irlandês que viveu entre 484 e 577, no período que marca o fim do Império Romano do Ocidente. De uma célebre viagem rumo ao desconhecido - naquele tempo poucos tinham a certeza de que a terra era redonda - , mas que almejava chegar aos Jardins do Éden, o religioso e seus companheiros teriam estado, por volta do ano 566 d.C. em uma terra chamada Hy Brazil. Desses relatos teriam surgido as indicações nos mapas medievais.

Os Livros da Magia (Books of Magic), de Neil Gaiman
Atlântida é Hy-Brasil, segundo Neil Gaiman
A história é cheia de outros indícios. Há quem diga que é a América, e há quem garanta ter estado lá e até ter visto um escocês com roupas antigas, um castelo, cavalos e coelhos negros, como no conhecido relato do capitão irlandês John Nisbet. Em "Os Livros da Magia", Neil Gaiman nos indica onde está Hy-Brasil, e que ela também tem outros nomes.

Cinábrio (cinnabar)
Sementes de pau-brasil
Há quem defenda ainda que o nome Brasil tenha origem no vocábulo hebraico barzel. Seja como for, o nome é anterior ao país. Seria uma ilha, a madeira, de onde se extrai tinta vermelha ou mesmo o mineral cinábrio. Hebreus e fenícios comerciavam o corante retirado do sulfureto de mercúrio, de cor avermelhada.

Na etimologia da palavra aparece a variante kinnabar (grego). Em celta, com a inversão das sílabas, kinnabar teria virado barkino, depois barcino, nome dados aos animais de pelo vermelho. O equivalente em gaélico irlandês seria breazáil, ou brazil. Provavelmente, no mundo antigo, fenícios viajaram pelo globo, junto com gregos e celtas. Aí adentramos no lado oculto da história.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Roger Casement no Breazáil I


No mínimo instigante, já que os adjetivos têm que ser usados com parcimônia, a menção do nome e memória do irlandês Roger David Casement (1864-1916), em recente evento promovido pela Embaixada da Irlanda, em Brasília.

Roger David Casement foi cônsul britânico no Brasil (entre 1906 e 1913), onde teve destacado, porém pouco citado, papel na história de nosso país; suas observações praticamente decretaram o fim do ciclo da borracha; mas também é herói irlandês, um dos grandes nomes por trás da unificação e independência da Irlanda, e igualmente figura controversa. Denunciou crimes contra a humanidade e terminou executado pelos britânicos, acusado de alta traição por levar armas aos separatistas irlandeses.

Roger Casement no Guarujá (SP), circa 1906
This man foi protagonista em amplos aspectos: na história do Brasil e na derrocada da indústria nacional da borracha (o Brasil e vizinhos países amazônicos perderam para a Ásia o posto de maior produtor mundial do produto, principalmente depois que Casement engrossou o caldo de denúncias de violenta humilhação e exploração trabalhista na selva peruana); assim como na história do reconhecimento de direitos de populações subjugadas, melhor dizendo, respeito e garantias aos direitos humanos, antes mesmo desses direitos assim serem reconhecidos; e de quebra, instigou a luta contra o imperialismo e as forças malignas do livre mercado, de todas as latitudes. Our hero.

Mas não apenas. Com a visão distanciada de hoje percebe-se alguém que fez da liberdade e quanto custa sua razão de ser, entregando corpo, alma e armas a esse desígnio.



Luke Gibbons, professor de literatura irlandesa traçou um paralelo entre Roger Casement e James Joyce
Painel sobre o legado de Casement


Catedral de Brasília iluminada de verde em homenagem a São Patrício
No dia dedicado a São Patrício (17 de março), santo padroeira da Irlanda, a embaixada daquele país promoveu, em Brasília, o seminário “Roger Casement e os Direitos Humanos no Brasil – De Diplomata a Revolucionário”, o qual procurou, de maneira intensiva, elucidar e trazer à tona aspectos relevantes da biografia deste que como poucos uniu nações tão díspares (Irlanda e Brasil), mas com muito em comum além de costas banhadas pelo Atlântico.


O que segue nesta oportunidade tem por base a participação no referido seminário e a leitura do livro “Roger Casement no Brasil – A Borracha, a Amazônia e o Mundo do Atlântico 1884-1916” (Editora Humanitas), do pesquisador Angus Mitchell, de onde derivam muitas das informações aqui postadas. Esta obra, por sinal, parece ser bom ponto de partida para explorar a história e as histórias do ilustre desconhecido Roger Casement.

Belém, no auge do ciclo da borracha, início do séc. XX
Bondes elétricos em Manaus, no auge do ciclo da borracha
Ilustre desconhecido, com o perdão da expressão, no Brasil, é claro. Roger Casement, com o caso Putumayo, ocorrido na Amazônia peruana, no qual dizem ter morrido 100 mil indígenas (os números não são precisos), simplesmente parece ser o homem que acendeu o pavio que faria implodir a indústria da borracha na Amazônia e acabaria para sempre com a glória de Manaus e Belém, as capitais mais importantes da região e as mais beneficiadas com os lucros obtidos com o comércio desse produto.

Hevea brasiliensis (seringueira) (rubber tree)
Na Ásia controlada pelos ingleses, para onde foram levadas mudas da Hevea brasiliensis, as seringueiras, surgiu o lugar perfeito para o cultivo da planta, sem os horrores da degradação humana vistos na Amazônia.

Roger Casement na Amazônia, 1910
Roger Casement, conta a história, serviu no Brasil como agente consular a serviço do Império Britânico, no início do século XX, tendo atuado em Santos (setembro de 1906 a janeiro de 1908), Belém (fevereiro de 1908 a fevereiro de 1909) e Rio de Janeiro (março de 1909 a agosto de 1913).

Mais do que um burocrata afeito às questões de interesse dos governos dos monarcas da Casa de Saxe Coburg and Gotha (nesse período brasileiro de Casement, foram reis dessa dinastia: Edward VII [1901-1910] e George V [1910-1917]), Roger Casement fincou o nome na história tanto como precursor do discurso de defesa dos direitos humanos (a Declaração Universal dos Direitos Humanos só viria a ser adotada muito depois, em 10 de dezembro de 1948, pela Organização das Nações Unidas) quanto pela participação ativa no movimento nacionalista irlandês, o que o levou, de maneira surpreendente, a ser preso e condenado à morte, na Inglaterra, por alta traição.


Jovens mutilados no Congo belga
No primeiro caso, os direitos humanos, Roger Casement foi figura fundamental nas denúncias de atrocidades cometidas contra milhares de homens, mulheres e crianças, em solo africano, em nome da expansão imperialista europeia. De sua longa estada na África Ocidental, Casement documentou terríveis barbáries no Congo belga (Zaire, entre 1971 e 1997, atual República Democrática do Congo), patrocinado pelo reinado de Leopoldo II (1865-1909).


Instalada em África colonizada, para explorar a extração de látex, a fim de atender à crescente demanda mundial por borracha, a administração de Leopoldo II (intitulada Estado Livre do Congo, em verdade um reino privado deste monarca belga em plena África) implantou sistema cruel de exploração escravagista de mão-de-obra, no qual a tortura, a mutilação e mortes eram praxe das “relações” de trabalho.

Castigo sumário para quem não atingisse as cotas
Situação absurda decorria do sistema de cota de produção implantado pelo regime: aqueles que não atingissem o estabelecido eram sumariamente punidos com chibatadas e a decapitação dos membros, por soldados do Exército. A Europa só tomou conhecimento público dessa insanidade quando o jornalista britânico de origem francesa Eugene Morel passou a publicar relatos sobre esse tipo de economia baseada na exploração, a partir do ano 1900.

O detalhe das mãos
Nativos aprisionados e escravizados, em suposta foto atribuída a Roger Casement no Congo belga
Jornalismo investigativo de Edgar Morel
Ainda que pouco disseminada à época, a fotografia foi fundamental no convencimento da opinião pública de que algo profundamente errado ocorria em meio à longínqua selva africana. Fotos de crianças e jovens amputados comprovavam em imagens as denúncias e levavam o horror aos lares abastados das principais cidades europeias. Casement produziu álbuns de fotografias, fazendo da câmera um instrumento indispensável na comprovação das condições registradas nos relatórios que escreveu.

O horror, o horror sob o reinado de Leopoldo II

Em 1903, Roger Casement, que já atuava na região e compilava escritos sobre as atrocidades, foi destacado pelo governo britânico para empreender viagem pelo alto Congo. Sua investigação redundou em relatório pormenorizado da brutalidade e do sofrimento insano imposto aos negros habitantes da região. De quebra, Casement também reportou a destruição sistemática do meio ambiente. Já naquela época, o diplomata reclamava da violação de tratados humanitários estabelecidos pelas potências europeias, quando da repartição do território africano, no fim do século XIX.

Essa experiência de visão da exploração desmedida de pessoas e do meio ambiente certamente qualificou o diplomata Roger Casement quando o governo britânico o designou para assumir novos postos no Brasil, em 1906. Mal sabia Sua Majestade Edward VII que dessas observações resultariam um crítico questionador dos males do Império em escala mundial. E mais: o Império que cometia barbáries ultramarinas era o mesmo que açodava sua terra natal, a Irlanda, que também se pretendia livre e soberana de Londres.


Escritos desses primeiros anos no Brasil revelam um diplomata rancoroso com a cultura e o modo de ser do povo brasileiro. Estudiosos dizem que esses comentários eram muitas vezes ofensivos e carregados de racismo. Não há justificativa, em qualquer época, para comentários desse porte. Porém, no caso de Casement, sua visão era de testemunha do encontro dos povos nativos em choque com a modernidade europeia e o poder imperialista. O incomodava, sobretudo, a passividade da classe média brasileira, completamente alheia ao que ocorria nos rincões do território.

Índios acorrentados. Foto de Walter Hardenburg
Os indígenas, ele entendia como o lado mais fraco desse choque cultural e o mais exposto às atrocidades, vítimas da ganância. Provavelmente naquele tempo, o diplomata europeu, mesmo tendo por formação vitoriana a ideia de que os indígenas eram “bons selvagens”, que precisavam ser civilizados, identificava que os exploradores ao tomar posse violenta da terra e determinar a extração dos valiosos recursos naturais, só deixavam para trás a terra arrasada. Junto com árvores tombadas, cursos d’água afetados e imensas crateras, que resultavam na perda da biodiversidade, também eram feridos de morte o patrimônio cultural e a dignidade dos seres humanos daquelas terras.

Ao que parece, aos poucos Roger Casment passou a enxergar nos explorados povos sul-americanos a articulação nacionalista que desenvolveu quando passou a se dedicar à libertação de sua nação irlandesa do jugo britânico. Na jovem república brasileira, Casement percebia, já naquela época, que o país, com sua grandeza continental, e povo miscigenado, havia sido erigido sob a violência do Império de Portugal e nações “amigas”, com história escrita a base de exploração indígena, escravagismo e extração criminosa dos recursos naturais que durante centenas de anos alimentaram o fausto das Cortes.

O caso Putumayo






O Brasil com seus problemas não eram nada perto do que se passava ao norte do continente sul-americano, na fronteira amazônica. O coração da selva, no alvorecer do século XX, encantava o mundo com seus mistérios e lugares intocados, mas também escondia as mais abjetas e hediondas atrocidades de populações indígenas em nome do progresso das nações mais ricas do planeta.

Pelas de borracha em estação de tratamento do látex
A indústria da borracha vivia o boom de sua produção e a região compreendida pelo Perú, Brasil, e Colômbia apresentava os mais extensos seringais, onde predominavam as espécies Hevea benthamiana, Hevea guyanensis e a Hevea brasiliensis. Naquele lugar, ao longo dos rios Putumayo e Igaraparaná se instalou a Peruvian Amazon Company (PAC), empreendimento comandado pelo peruano Julio Cesar Arana del Águila (1864-1952) que, ao ser bem-sucedido na produção de borracha, atraiu os interesses e os aportes do capital inglês.

Arana, empresario cauchero y politico peruano
Arana recrutou capatazes em Barbados, no Caribe, que logo passaram a comandar com mão de ferro o esquema de exploração dos trabalhadores (principalmente índios das etnias Witoto, Okaina, Bora, Uinona, e Miraña) nos seringais e usinas de beneficiamento da borracha comandados pela empresa.

Walter Hardenburg
Coube a um engenheiro norte-americano chamado Walter Hardenburg iniciar as denúncias da situação. Atraído pelo boom da borracha, em 1908, Hardenburg embrenhou-se na selva, a partir de Iquitos, no Perú, e testemunhou in loco a dizimação das comunidades. Ao que parece, o engenheiro pretendia se juntar ao malfadado projeto de construção da ferrovia Madeira-Mamoré, mas acabou ficando no meio do mato, tornando-se mais uma vítima da Peruvian Amazon Company.


Hardenburg testemunhou a caça de índios e a captura de jovens mulheres, para servirem de esposas dos capatazes e superiores. Viu pessoas doentes, famintas, em estado cadavérico, sendo obrigadas a fornecer a cota estipulada, isto é, carregando as pesadas bolotas de borracha com a ajuda de familiares e crianças.

Índios witotos escravizados

Seres humanos humilhados na selva
Bons selvagens, bons escravos
Os que não conseguiam eram duramente castigados com chicotadas na frente de todos.
Walter Hardenburg escapou desse inferno e chegou até Londres, onde entrou em contato com editores de uma publicação econômica que se interessou em divulgar seu relato. Suas denúncias foram encampadas pela organização Anti-Slavery and Aborigines Society (atual Anti-Slavery Society).

Rapidamente os ecos chegaram ao governo britânico. O Ministério das Relações Exteriores, escolado nas experiências do Congo belga, convocou o cônsul no Rio de Janeiro, Roger Casement, para investigar as atrocidades. Segundo o historiador Angus Mitchell, Casement teria pressionado o secretário das Relações Exteriores, Sir Edward Grey, para que fosse assim designado. Não imaginava o herói irlandês – já à época um ardente defensor do anti-imperialismo – que estava prestes a penetrar em um novo coração da escuridão nas terras do Putumayo.

Casement, primeiro à direita, e a Comissão da Amazônia Peruana 

Casement visitou duas vezes a região do Putumayo. De Londres até a Amazônia, de barco, passou por Belém, e subiu o rio Amazonas até Manaus e Iquitos, no Perú. Ele relata encontros com os capatazes que comandavam as atrocidades, e expõe a rede de fraude e corrupção, e os envolvidos diretamente no recrutamento dos indígenas. Os relatos não poupam as autoridades peruanas e a dificuldade de identificar e levar a julgamento os envolvidos nos crimes. Todos os detalhes da viagem foram compilados em The Amazon Journal of Roger Casement, publicado somente em 1997.


Depois que os relatos de Casement foram tornados públicos, a pressão dos países compradores de borracha tornou insustentável os métodos de exploração comandados por Arana. Como resultado, os ingleses procuraram se livrar dos esqueletos e farrapos humanos perdidos na selva e rapidamente estabeleceram plantações na Ásia e para lá transferiram as principais unidades de produção e beneficiamento, marcando o fim do período de exploração da borracha na Amazônia.

A campanha no Congo e os informes amazônicos foram reconhecidos pelo reino britânico, que conferiu a Casement o título de cavaleiro do império. Por alguns anos Roger Casement havia se tornado Sir Roger Casement.


Ao voltar para a Europa, Roger Casement, que ao longo dos anos manteve ativo o desejo de libertação de sua pátria irlandesa, tomou decisão surpreendente de abandonar o serviço público britânico. Em seus planos, dar autonomia política e territorial à Irlanda era questão tão urgente quanto foi restituir a dignidade das populações nativas do Congo e da Amazônia.

Levante da Páscoa (Easter Rising)
De 1913 a 1916, quando capitulou, Roger Casement havia se tornado uma das mais importantes figuras do separatismo irlandês. Seus últimos movimentos são de dramaticidade espetacular.

Em 1914, com a ajuda da historiadora e nacionalista irlandesa Alice Stopford Green, conseguiu contrabandear armas para Dublin. Buscou apoio à causa irlandesa nos Estados Unidos e depois decidiu viajar secretamente até a Alemanha, onde havia feito contatos no intuito de conseguir apoio germânico na luta pela independência contra os ingleses.

Casement (o único com a cabeça descoberta) a bordo do submarino alemão U19
Em 1916, já com a Primeira Guerra Mundial assolando a Europa, Casement obtém armas, uns poucos homens que eram prisioneiros de guerra em solo alemão, mas nenhum treinamento militar. Ele retorna à Irlanda em um submarino alemão, desembarcou fraco e doente, e foi capturado no dia 21 de abril, Sexta-feira Santa, dias antes do Levante da Páscoa (Easter Rising), em um forte medieval, na região de Banna Strand, em Tralee Bay, condado de Kerry.



Acusado de sabotagem, traição e espionagem, foi transferido para a prisão na Torre de Londres. A campanha difamatória dos ingleses incluiu revelações da intimidade de Casement, que passou a ser visto como sodomita, pervertido e homossexual. Em sua defesa acorreram pessoas do porte de Sir Arthur Conan Doyle, o poeta William Butler Yeats, o teatrólogo George Bernard Shaw.

Roger Casement foi enforcado na prisão londrina de Pentonville, aos 51 anos, no dia 3 de agosto de 1916.

Túmulo de Roger Casement, no cemitério de Glasnevin

The Wolfe Tones - The Lonely Banna Strand