Na revista Roteiro Brasília, n° 245, Mr. Menezes ataca novamente, desta vez com escritos sobre shows, em homenagem a Maria Bethânia (em 26/11/15), e de Morrissey (ex-Smiths) (em 29/11/15), todos em Brasília (DF).
Na mesma publicação, matéria sobre o jornalista e escritor Marcelo Araújo, um dos raros autores que se dedicam ao terror, o gênero literário que legou à humanidade verdadeiras obras-primas e fez (e faz) girar fortunas, ainda mais quando transpostas para outras linguagens como o cinema.
Seguindo os passos dos grandes mestres, e cobrindo uma lacuna na literatura brasileira, que pouco produziu a respeito, Marcelo Araújo publicou no gênero “Não Abra – Contos de Terror” (Ed. Thesaurus) (2009); “Pedaço Malpassado” (Ed. Thesaurus) (2011); e “A Maldição de Fio Vilela” (Ed. Thesaurus) (2012). Só com a leitura desses três livros, percebe-se o rico valor literário e artístico, um andar no fio da navalha, um mergulho no coração das trevas, algo como jogar o medo na máquina de lavar roupas. Ao final do processo, sai a alma lavada, novinha em folha, pronta para novos medos, novos desafios.
E aqui uma ressalva, quando falamos em terror, apeguemo-nos à etimologia da palavra, o latim, que significa espanto, horror, pavor, ou seja, a característica do que é terrível, e que tanto perturba a mente humana. Ainda que a palavra guarde similitude, está longe de ser uma apologia ao terrorismo, ou seja, aquele emprego sistemático da violência para fins de dominação política, vide a prática radical de atentados, como rotineiramente presenciamos em nossos dias.
Com Sophia Loren sob domínio é bom ser Átila, não é, Anthony Quinn? |
Gilberto Freyre |
Assombrações do Recife Velho: clássico obrigatório |
Isso numa conversa erudita. Mas como o sociólogo Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) bem sabia das coisas, sabia que na sabedoria do populacho os mortos aparecem como “visagens” ou “assombrações”, “em que as supostas manifestações de espíritos de mortos às vezes se confundem com supostas aparições do próprio demônio”.
Aqui em Pindorama, arremata Freyre, o imaginário tem certeza que os demônios aparecem disfarçados de bodes, cabras, cabriolas, mulas-sem-cabeça, lobisomens, boitatás, porcos, queixadas, cachorros, cães ou gatos de olhos de fogo, quibungos, papões, mãos-de-cabelo, cobras-norato, almas-de-gato, capelobos, e papa-figos. “Toda uma fauna infernal que se a sociologia do sobrenatural descesse do divino ou do angélico ao misticamente bestial, teria que considerar como ‘sociedade’ a seu modo animal”.
Gilberto Freyre é uma referência. “Assombrações do Recife Velho” é leitura obrigatória para os amantes do Recife e do terror literário.
Marcelo Araújo |
Blog do Hektor – Jornalista, agora escritor. O que é isso, uma transição, ou uma opção de vida?
Marcelo Araújo – Os dois estão juntos, sempre estiveram. Comecei a escrever na minha infância. E foi lá que comecei a pensar em ser jornalista. As duas coisas surgiram juntas. Sou jornalista formado pela UnB há 25 anos e trabalhei em jornal, em assessoria de imprensa, em rádio.
BH – Antes que a gente passe para o assunto que efetivamente nos interessa, e ainda falando sobre jornalismo, na sua concepção o jornalismo morreu?
MA – Acho que não. Está mais vivo do que nunca. O jornalismo se transforma. Não podemos ter em mente que o jornalismo de hoje é igual ao feito nos anos 1970, 80 ou 90. A internet mudou muita coisa, contribuiu para democratizar a informação, para tornar a coisa de escrever, os meios de produção mais democráticos. Não estou dizendo que ela é um paraíso, mesmo porque ainda é preciso fazer muita coisa em termos de inclusão digital, mas acho que o jornalismo está vivo na internet, nos blogs, nos sites. Mesmo o jornalismo impresso continua.
BH – Não acha que estamos vivendo uma crise da comunicação?
MA – Vejo mudanças.
BH – Crise que afeta o mercado...
MA – Com certeza, vivemos uma crise econômica. As empresas de comunicação são empresas. Fatalmente tem demissões no setor, enxugamento da máquina, temos visto uma tendência a diminuir o efetivo das redações. Mudanças dinâmicas. O jornalismo não morreu, não.
BH – Quando falo em crise da comunicação, refiro-me à qualidade da informação disponível por aí. Se por um lado, a internet e as redes sociais deram amplo acesso à difusão de informações, do outro temos a baixa qualidade da informação consumida, se é que assim podemos dizer. Muita abobrinha, muita besteira. O impacto é muito grande. A tal história: grande quantidade, pouca qualidade.
MA – Bem, sempre vai haver jornalismo de boa e de má qualidade. Bons e maus profissionais.
BH – Insisto. Quero dizer que hoje o jornalismo é quase supérfluo. Ninguém precisa mais comprar o jornal ou ver o principal noticiário da tv, para se informar, neste país. Você sabe antes no seu smartphone, no tablet, nos aplicativos de mensagens. Falo da informação que é tomada por verdade. As pessoas recebem histórias inventadas e tomam mentiras como fatos verídicos. Pouco importa a veracidade. Manipular a informação não é mais privilégio dos meios de comunicação.
MA – Particularmente, leio muito jornal e revista. Acho que o jornalismo impresso pode se sobressair a essa crise, na medida em que consiga fazer textos mais aprofundados. Esse é um diferencial. A internet dá antes, mas veja, são linguagens diferentes: a internet, a televisão, o impresso. Pessoalmente, procuro ir além da notícia dos fatos, gosto de análise. A análise sai um pouco do factual e nos ajuda a entender o contexto dos fatos. Acho que os jornais e as revistas têm colunistas e artigos que analisam os fatos e conseguem preparar reportagens mais densas. A televisão e o rádio também oferecem a oportunidade de análise mais crítica. Não sei se o jornalismo vai acabar. O mundo dá tantas voltas. Não vejo o fim da imprensa escrita, com o perdão da redundância. Essa linguagem não deve acabar nas próximas décadas.
BH – Muito bem. Agora, falando dos livros, quais são eles e em que anos foram lançados?
Don't be afraid, this guy is a gentle soul |
BH – Dá para viver disso?
MA – Não. Vivo do meu trabalho como jornalista. Vendi alguns livros, mas o maior ganho, para mim, foi o fato de ter lançado esses livros, poder divulga-los. Minha batalha é a divulgação. Divulgo na imprensa, em blogs, fiz o lançamento deles no Rio de Janeiro. Hoje, quase seis anos depois de meu primeiro livro, me surpreendo que muita gente conhece o meu trabalho. Volta e meia descubro um blog, um site, onde uma pessoa comenta, indica um livro meu. É um longo caminho. Por onde passo, divulgo meus livros, até no exterior. Por onde vou deixo os livros numa biblioteca.
BH – Você continua produzindo literatura.
MA – Tenho material para lançar mais uns quatro ou cinco livros. Tem um infantil pronto, uns três de terror, um deles foi o primeiro livro que concluí, em 2004. A crise tá meio braba, os recursos estão escassos, se conseguir, ano que vem lanço outro de terror.
BH – De onde vem a influência ou a preferência pelo terror?
MA – É um gênero que eu gosto muito. Desde criança, antes mesmo de enveredar pela literatura de terror, ler os livros de terror, sempre tive um fascínio pelas histórias de fantasmas. Morei no Nordeste, quando criança, em São Luís, e sempre ouvia muitas histórias de assombração, de fantasmas. Na televisão, via programas que tinham reconstituição dessas histórias de fantasmas. Depois vieram os filmes de terror e a literatura do gênero.
BH – Algum autor literário o influenciou diretamente?
Edgar Allan Poe |
Ambrose Bierce |
Algernon Blackwood |
Daniel Defoe |
H.P. Lovecraft |
Sheridan Le Fanu |
BH - E cinema?
MA - Gosto muito mais de filmes de assombração, de exorcismos, de demônios, de fantasmas, do sobrenatural do que de psicopatas, essa coisa de só sangue, só violência...
BH – Matança, matança...
MA – Um ou outro filme assim é interessante, mas é uma coisa meio repetitiva.
BH – Que filmes te marcaram?
Conde Orlock (Max Schreck): Nosferatu, de Murnau (1922) |
Klaus Kinski e Isabelle Adjani: Nosferatu, de Herzog (1978) |
Willem Defoe, como Max Schreck, em "Shadow of the Vampire" (2000) |
BH – Você passou por toda essa escola? Os filmes da “Hammer”...
Christopher Lee, Conde Drácula |
Ju-On (The Grudge) (2002) |
BH – O Walter Salles refilmou o “Água Negra”. Mas o original japonês é muito superior.
MA – O filme do Walter Salles, ele parece que deu uma aliviada no terror. Uma coisa que os japoneses não fazem é aliviar. Os filmes japoneses são barra pesada, mas barra pesada não no sentido de sangue explícito e violência extrema, mas no sentido de meter medo mesmo. Falando de uma coisa que não tem nada a ver com cinema, mas dentro desse assunto, e que é muito legal, eu lembro que, aqui em Brasília, no começo dos anos 80, tinha um programa de rádio, na Rádio Alvorada AM, chamado “Histórias que o Povo Conta”, que era de reconstituição de histórias de fantasmas. Adorava ouvir isso de manhã. Anos mais tarde encontrei com alguém que disse que trabalhava nesses programas e a pessoa me disse que era tudo inventado. No começo eles até tinham umas histórias interessantes, mas depois passaram apelar, com coisas muito absurdas. Uma delas dizia que havia um dinossauro no Lago Paranoá e que levantava à noite, e as pessoas viram esse monstro, tipo o monstro do Lago Ness. Na Globo, no Fantástico, em 1980, eles tinham um quadro chamado “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, que foi responsável por algumas noites insones. Eram reconstituição de histórias que as pessoas enviavam. Uma delas, que está no Youtube, parece que é a única disponível, é sobre uma família do interior de São Paulo que é visitada por uma mulher que é um fantasma. É com o (ator) Sebastião Vasconcelos. O detalhe é que esse quadro, “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, a ideia veio de um programa de rádio dos anos 1940, produzido e narrado pelo Almirante, aquele autor de sambas, um clássico brasileiro. Mesmo lance, reconstituição de casos fantasmagóricos. Esse programa tinha o mesmo nome, “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, era transmitido pela rádio Tupi, no Rio de Janeiro, e durou até o início da década de 1950. Era um programa com dramatização, orquestra, sonoplastia, música. Acho que o Fantástico pegou o mesmo nome e a mesma ideia desse programa.
BH – Todo esse terror fantástico exercia e exerce um fascínio, diferente do terror real que se apresenta no dia-a-dia, como acontece com os programas de casos policiais, muito comuns na tv. Isso parece que nunca vai acabar. No entanto, a proposta desses programas contemporâneos parece que é mais aterrorizar o cidadão comum com essas doses diárias de violência do que se valer da licença poética, não é verdade?
MA – Sim. A literatura faz isso de forma poética. Acaba que essas histórias de terror, de fantasmas, que estamos falando, são contos de fadas perto dessa realidade brutal.
BH – Acho que o mérito dessas histórias extraordinárias é podermos extrair uma essência humana que dignifique a existência, não é? Sem querer forçar a barra, dá para tirar algo desses programas policiais, onde os apresentadores parecem incentivar a Lei de Talião, a justiça com as próprias mãos? Seguindo em frente, gostaria que você falasse sobre “A Maldição de Fio Vilela”. Inevitável nessa novela uma certa influência do Noriel Vilela, o grande cantor, baixo-profundo, que foi membro dos Cantores de Ébano.
O CULTO A NORIEL VILELA
MA – (Fazendo a voz bem grave, primeiro verso de “Saudosa Bahia”): “Está fazendo três semanas que eu cheguei de lá”... É o grave mais interessante que existe na música popular brasileira.
BH – Ele apresenta um ponto de vista muito peculiar. Quase sempre é um preto velho falando. A letra de “Só o Ôme” é sensacional. O cara é mau marido, mau filho, puxa-saco do patrão, passou a perna no amigo e agora tá na pior. Ao que parece vai num terreiro e ouve do preto velho o conselho: “Ah, mon fio, do jeito que suncetá, só o ôme pode ajudar”. Ôme, no caso, é a entidade que o cidadão deve encontrar numa encruzilhada à meia-noite. “Destampa o marafo e chama o ôme”. Que roubada.
Marafo para ela e para ele |
Marafo Zé do Caixão, edição de colecionador |
Zé Pelintra |
BH – Essa influência das religiões e cultos afro-brasileiros que aparecem no livro e nessas referências. Você frequenta os terreiros? É praticante da umbanda?
Vila Telebrasília, Brasília (DF) |
BH – Com que finalidade você foi, o que estava rolando lá?
MA – Fui para conhecer. Era o dia em que você podia conversar com as entidades.
BH – Sério?
MA – Sim, tem todo um ritual. Você pega uma senha, para ser atendido. Eles fazem orações cristãs, rezam o Pai Nosso. Depois você pode conversar com pessoas que você olha e elas são absolutamente normais. Elas incorporam e você vai até elas e pode perguntar o que quiser. Eu falei com um senhor, que não ficou me dizendo coisas sobrenaturais, mas coisas sobre filosofia, compreensão, harmonia, paz, entendimento, a questão do amor. Isso que eu achei legal. Uma mensagem positiva, que poderia ter sido dita por um psicanalista...
BH – Uma coisa respeitosa.
MA – Sim. Nada de charlatanismo, nem sacrifício de animais, até porque eu jamais participaria de coisas assim. Sou a favor do direito dos animais.
BH – E você consegue identificar quem estava falando com você?
MA – Um preto velho, pelo que se coloca naquele ritual.
BH – Ele tinha um nome?
MA – Cada pessoa ali incorpora uma determinada entidade. Muito interessante. Estava ali um senhor branco, com cara de europeu, mas falando igual a um preto velho, fumando cachimbo.
BH – Para você o interesse é cultural?
MA – Sim, muito mais do que religioso.
BH – Igual aquele pessoal que diz “procure saber”...
MA – Exatamente. Essas religiões afro-brasileiras tem uma ligação muito forte com a música. Fui a Salvador, achei no Pelourinho uns cds e lps de candomblé, de música de terreiro. Tem uma coisa cultural muito forte, de dança, de expressão. Noriel Vilela é um caso. Embora não seja candomblé puro e tal, ele funde uma coisa mais pop, de sambalanço, de samba-rock. Noriel Vilela morreu cedo, em 1974. Ele teve um acidente em um dentista. Ele tomou um anestésico, teve uma reação alérgica, passou mal e morreu.
Tennessee Ernie Ford |
MA – Sim, “16 Toneladas”, um compacto. Essa versão, muito boa, toca até hoje nessas festas de samba-rock. Interessante é que o original é algo meio folk e o Noriel Vilela transformou a canção com letra e batida samba-rock. É um dos grandes sucessos do grupo Funk Como Le Gusta.
"Another day older and deeper in debt"
Contato do Marcelo Araújo: marcelomca1970@gmail.com
Heitor, queria agradecer muito por essa entrevista, que dá uma super-divulgada em meu trabalho!! Valeu pela atenção e espaço, super valorizado e refinado por sua rica cultura musical, artística, histórica, política e jornalística. Um grande abraço e sucesso pro blog!!! Marcelo Araújo
ResponderExcluirVocê imitando o Noriel Vilela é impagável. Obrigado e keep on rocking, amigo.
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