segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Roteiro 245 - Marcelo Araújo remix



Na revista Roteiro Brasília, n° 245, Mr. Menezes ataca novamente, desta vez com escritos sobre shows, em homenagem a Maria Bethânia (em 26/11/15), e de Morrissey (ex-Smiths) (em 29/11/15), todos em Brasília (DF).


Na mesma publicação, matéria sobre o jornalista e escritor Marcelo Araújo, um dos raros autores que se dedicam ao terror, o gênero literário que legou à humanidade verdadeiras obras-primas e fez (e faz) girar fortunas, ainda mais quando transpostas para outras linguagens como o cinema.




Seguindo os passos dos grandes mestres, e cobrindo uma lacuna na literatura brasileira, que pouco produziu a respeito, Marcelo Araújo publicou no gênero “Não Abra – Contos de Terror” (Ed. Thesaurus) (2009); “Pedaço Malpassado” (Ed. Thesaurus) (2011); e “A Maldição de Fio Vilela” (Ed. Thesaurus) (2012). Só com a leitura desses três livros, percebe-se o rico valor literário e artístico, um andar no fio da navalha, um mergulho no coração das trevas, algo como jogar o medo na máquina de lavar roupas. Ao final do processo, sai a alma lavada, novinha em folha, pronta para novos medos, novos desafios.

E aqui uma ressalva, quando falamos em terror, apeguemo-nos à etimologia da palavra, o latim, que significa espanto, horror, pavor, ou seja, a característica do que é terrível, e que tanto perturba a mente humana. Ainda que a palavra guarde similitude, está longe de ser uma apologia ao terrorismo, ou seja, aquele emprego sistemático da violência para fins de dominação política, vide a prática radical de atentados, como rotineiramente presenciamos em nossos dias.

Com Sophia Loren sob domínio é bom ser Átila, não é, Anthony Quinn?
Esse é assunto muito mais complexo, quando lembramos que figuras históricas como Átila, o Huno, também conhecido como o “Flagelo de Deus”, fez extensivo uso da força e do terror como meio de dominação, na Europa, entre os anos 434-453. Na História, o Terror foi assim designado em França, entre a queda dos girondinos (1793) e a cabeça de Robespierre (1794). Os exemplos são incontáveis e muitos ainda virão, podem apostar.

Gilberto Freyre
Antes de termos uma conversa esclarecedora com Marcelo Araújo e sua sombria preferência pelo lúgubre e o macabro literário, aproveitemos o ensejo para lembrar de mestre Gilberto Freyre, um dos poucos autores brasileiros a iluminar os caminhos escuros do temor universal da morte, claro, como oposição ao que está vivo, que sente a vida em sua plenitude com todos os sentidos.

Assombrações do Recife Velho: clássico obrigatório
Na grande defesa que fez em sua obra “Assombrações do Recife Velho” (1955), Gilberto Freyre (famoso por “Casa Grande & Senzala”) foi direto na ferida: “Não é descabido, nem em sociologia nem em psicologia social, considerar-se o fato de que não há sociedade ou cultura humana da qual esteja ausente a preocupação dos vivos com os mortos. E essa preocupação, quase sempre, sob alguma forma de participação dos mortos nas atividades dos vivos. O próprio positivismo admite que ‘os vivos’ sejam ‘governados pelos mortos’”.

Isso numa conversa erudita. Mas como o sociólogo Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) bem sabia das coisas, sabia que na sabedoria do populacho os mortos aparecem como “visagens” ou “assombrações”, “em que as supostas manifestações de espíritos de mortos às vezes se confundem com supostas aparições do próprio demônio”.

Aqui em Pindorama, arremata Freyre, o imaginário tem certeza que os demônios aparecem disfarçados de bodes, cabras, cabriolas, mulas-sem-cabeça, lobisomens, boitatás, porcos, queixadas, cachorros, cães ou gatos de olhos de fogo, quibungos, papões, mãos-de-cabelo, cobras-norato, almas-de-gato, capelobos, e papa-figos. “Toda uma fauna infernal que se a sociologia do sobrenatural descesse do divino ou do angélico ao misticamente bestial, teria que considerar como ‘sociedade’ a seu modo animal”.

Gilberto Freyre é uma referência. “Assombrações do Recife Velho” é leitura obrigatória para os amantes do Recife e do terror literário.

Marcelo Araújo
Mas, vamos ao Marcelo Araújo. Segue um remix da entrevista originalmente feita para a Roteiro. Aos editores da publicação, o mais sincero agradecimento pelo uso do material.

Blog do Hektor – Jornalista, agora escritor. O que é isso, uma transição, ou uma opção de vida?

Marcelo Araújo – Os dois estão juntos, sempre estiveram. Comecei a escrever na minha infância. E foi lá que comecei a pensar em ser jornalista. As duas coisas surgiram juntas. Sou jornalista formado pela UnB há 25 anos e trabalhei em jornal, em assessoria de imprensa, em rádio.

BH – Antes que a gente passe para o assunto que efetivamente nos interessa, e ainda falando sobre jornalismo, na sua concepção o jornalismo morreu?

MA – Acho que não. Está mais vivo do que nunca. O jornalismo se transforma. Não podemos ter em mente que o jornalismo de hoje é igual ao feito nos anos 1970, 80 ou 90. A internet mudou muita coisa, contribuiu para democratizar a informação, para tornar a coisa de escrever, os meios de produção mais democráticos. Não estou dizendo que ela é um paraíso, mesmo porque ainda é preciso fazer muita coisa em termos de inclusão digital, mas acho que o jornalismo está vivo na internet, nos blogs, nos sites. Mesmo o jornalismo impresso continua.

BH – Não acha que estamos vivendo uma crise da comunicação?

MA – Vejo mudanças.

BH – Crise que afeta o mercado...

MA – Com certeza, vivemos uma crise econômica. As empresas de comunicação são empresas. Fatalmente tem demissões no setor, enxugamento da máquina, temos visto uma tendência a diminuir o efetivo das redações. Mudanças dinâmicas. O jornalismo não morreu, não.

BH – Quando falo em crise da comunicação, refiro-me à qualidade da informação disponível por aí. Se por um lado, a internet e as redes sociais deram amplo acesso à difusão de informações, do outro temos a baixa qualidade da informação consumida, se é que assim podemos dizer. Muita abobrinha, muita besteira. O impacto é muito grande. A tal história: grande quantidade, pouca qualidade.

MA – Bem, sempre vai haver jornalismo de boa e de má qualidade. Bons e maus profissionais.

BH – Insisto. Quero dizer que hoje o jornalismo é quase supérfluo. Ninguém precisa mais comprar o jornal ou ver o principal noticiário da tv, para se informar, neste país. Você sabe antes no seu smartphone, no tablet, nos aplicativos de mensagens. Falo da informação que é tomada por verdade. As pessoas recebem histórias inventadas e tomam mentiras como fatos verídicos. Pouco importa a veracidade. Manipular a informação não é mais privilégio dos meios de comunicação.

MA – Particularmente, leio muito jornal e revista. Acho que o jornalismo impresso pode se sobressair a essa crise, na medida em que consiga fazer textos mais aprofundados. Esse é um diferencial. A internet dá antes, mas veja, são linguagens diferentes: a internet, a televisão, o impresso. Pessoalmente, procuro ir além da notícia dos fatos, gosto de análise. A análise sai um pouco do factual e nos ajuda a entender o contexto dos fatos. Acho que os jornais e as revistas têm colunistas e artigos que analisam os fatos e conseguem preparar reportagens mais densas. A televisão e o rádio também oferecem a oportunidade de análise mais crítica. Não sei se o jornalismo vai acabar. O mundo dá tantas voltas. Não vejo o fim da imprensa escrita, com o perdão da redundância. Essa linguagem não deve acabar nas próximas décadas.

BH – Muito bem. Agora, falando dos livros, quais são eles e em que anos foram lançados?

Don't be afraid, this guy is a gentle soul
MA – O primeiro livro chama-se “Não Abra – Contos de Terror”, foi lançado em 2009. É um livro com onze histórias de terror, que foi patrocinado com recursos do FAC – Fundo de Arte e Cultura do Distrito Federal, teve uma tiragem de mil exemplares. No final do ano passado, saiu a segunda edição e veio até com um conto de bônus. Depois, veio “Pedaço Malpassado”, de 2011. Neste são duas histórias, digamos correlatas. O terceiro, “A Maldição de Fio Vilela”, de 2012, é o meu terceiro livro de terror. Este é uma história só, uma novela, que se passa numa cidade do interior do Rio de Janeiro e trata de uma entidade sobrenatural que aparece para tentar roubar a alma da personagem principal. No quarto livro, mudei totalmente de praia, fiz um livro infantil, no qual eu mesmo fiz as ilustrações. Chama-se “A Testinha de Gabá” e não tem nada a ver com terror, o tema é o bullying. Por conta desse tema, teve boa repercussão. O “Fio Vilela” e “A Testinha de Gabá” foram parcerias com a (editora) Thesaurus. O quinto livro, que saiu agora, em 2015, chama-se “Casa dos Sons”, uma parceria com a editora Nautilus. São histórias que tem alguma coisa a ver com música. Uma personagem, uma inspiração que veio do universo da música. Tem um conto que é inspirado em João Donato. Tudo ficção.

BH – Dá para viver disso?

MA – Não. Vivo do meu trabalho como jornalista. Vendi alguns livros, mas o maior ganho, para mim, foi o fato de ter lançado esses livros, poder divulga-los. Minha batalha é a divulgação. Divulgo na imprensa, em blogs, fiz o lançamento deles no Rio de Janeiro. Hoje, quase seis anos depois de meu primeiro livro, me surpreendo que muita gente conhece o meu trabalho. Volta e meia descubro um blog, um site, onde uma pessoa comenta, indica um livro meu. É um longo caminho. Por onde passo, divulgo meus livros, até no exterior. Por onde vou deixo os livros numa biblioteca.

BH – Você continua produzindo literatura.

MA – Tenho material para lançar mais uns quatro ou cinco livros. Tem um infantil pronto, uns três de terror, um deles foi o primeiro livro que concluí, em 2004. A crise tá meio braba, os recursos estão escassos, se conseguir, ano que vem lanço outro de terror.

BH – De onde vem a influência ou a preferência pelo terror?

MA – É um gênero que eu gosto muito. Desde criança, antes mesmo de enveredar pela literatura de terror, ler os livros de terror, sempre tive um fascínio pelas histórias de fantasmas. Morei no Nordeste, quando criança, em São Luís, e sempre ouvia muitas histórias de assombração, de fantasmas. Na televisão, via programas que tinham reconstituição dessas histórias de fantasmas. Depois vieram os filmes de terror e a literatura do gênero.

BH – Algum autor literário o influenciou diretamente?

Edgar Allan Poe
Ambrose Bierce
Algernon Blackwood
Daniel Defoe
H.P. Lovecraft
Sheridan Le Fanu
MA – Tenho influência de literatura em geral, mas na área, temos Edgar Allan Poe, um mestre. Acho que qualquer pessoa que queira escrever sobre terror, que goste do gênero, precisa conhecer Edgar Allan Poe, pois é um mestre da narrativa. Ele é precursor não só do terror, mas da literatura policial. “Os Crimes da Rua Morgue”, por exemplo, antecipou o Sherlock Holmes. Temos Bram Stoker, o criador do Drácula. Eu recomendo, é um livro fantástico. Tenho muita influência dos escritores do século XIX, começo do século XX. Foi uma época muito rica. Tem dezenas, quiçá, centenas de escritores, bons autores de histórias de terror. Tem o Guy de Maupassant, escritor francês, que não escrevia só terror, mas romances realistas. Tem o Daniel Defoe, o criador do Robinson Crusoé. Uma compilação de suas histórias de terror é excelente. Tem Ambrose Bierce, que cobriu a Guerra da Secessão. Algernon Blackwood, H.P. Lovecraft, muitos autores fantásticos. Tem Sheridan Le Fanu, irlandês que criou aquela vampira Carmilla. Gosto de autores do século XX e adoro a literatura brasileira.

BH - E cinema?

MA - Gosto muito mais de filmes de assombração, de exorcismos, de demônios, de fantasmas, do sobrenatural do que de psicopatas, essa coisa de só sangue, só violência...

BH – Matança, matança...

MA – Um ou outro filme assim é interessante, mas é uma coisa meio repetitiva.

BH – Que filmes te marcaram?

Conde Orlock (Max Schreck): Nosferatu, de Murnau (1922)
MA – Muitos. Se olharmos da década de 20 (do século passado) para cá, é muita coisa. “Nosferatu”, do Murnau, é uma obra-prima. Um dos primeiros grandes filmes de terror.

Klaus Kinski e Isabelle Adjani: Nosferatu, de Herzog (1978)
BH – “Nosferatu” tem um grande, grande remake feito pelo Werner Herzog, com o Klaus Kinski, Bruno Ganz e a Isabelle Adjani.

Willem Defoe, como Max Schreck, em "Shadow of the Vampire" (2000)
MA - E outro grande filme, com o Willem Defoe e o John Malkovich, nos anos 90. Defoe faz o papel do vampiro e o Malkovich, o do Murnau. É um filme bem doido, mas muito legal. Tem aqueles filmes expressionistas alemães, “O Gabinete do Dr. Caligari”, “M – O Vampiro de Dusseldorf”; os filmes americanos da década de 30, tipo “Drácula”, com Bela Lugosi; “Frankenstein”, com o Boris Karloff. Teve o “Fantasma da Ópera”, ainda na década de 20, com o Lon Cheney, preto e branco, mudo.

BH – Você passou por toda essa escola? Os filmes da “Hammer”...

Christopher Lee, Conde Drácula
Ju-On (The Grudge) (2002)
MA – Sim, muito legais. Christopher Lee, Peter Cushing. “O Bebê de Rosemary”, do Polanski; “Psicose”, do Hitchcock. Esse foi o primeiro grande filme de psicopata. É um filme de terror, que assusta até hoje. Lembro que vi quando eu tinha 14 anos e depois, para dormir, à noite, não foi fácil. Até o “Tubarão”, do Steven Spielberg, pode ser considerado um filme de terror. “O Massacre da Serra Elétrica”, acho que pode também ser considerado um bom filme de terror; “Evil Dead”, do Sam Raimi. Quanto aos filmes de terror dos anos 80, foi justamente nessa época que eu vi muitos desses filmes: “Sexta-Feira 13”, “Poltergeist”. Hoje olhando, é uma época que não me fascina muito. Nos últimos anos, acho fenomenais os filmes de terror orientais, que vieram no final dos anos 90 e acabaram, muitos, sendo refilmados pelos americanos. O mais famoso deles é o “Ju-On”, que nos Estados Unidos virou “O Grito”. Trata de uma casa onde ocorreram uns crimes e, a partir daí, cria-se uma maldição, uns fantasmas. A história diz que, num lugar, quando ocorre uma morte em estado de raiva, surge uma maldição que permanece nesse lugar e quem encontrar com ela será consumido pela sua fúria. Tem o “Ringu”, que também foi refilmado nos Estados Unidos, como “O Chamado”, com a atriz Naomi Watts.


BH – O Walter Salles refilmou o “Água Negra”. Mas o original japonês é muito superior.

MA – O filme do Walter Salles, ele parece que deu uma aliviada no terror. Uma coisa que os japoneses não fazem é aliviar. Os filmes japoneses são barra pesada, mas barra pesada não no sentido de sangue explícito e violência extrema, mas no sentido de meter medo mesmo. Falando de uma coisa que não tem nada a ver com cinema, mas dentro desse assunto, e que é muito legal, eu lembro que, aqui em Brasília, no começo dos anos 80, tinha um programa de rádio, na Rádio Alvorada AM, chamado “Histórias que o Povo Conta”, que era de reconstituição de histórias de fantasmas. Adorava ouvir isso de manhã. Anos mais tarde encontrei com alguém que disse que trabalhava nesses programas e a pessoa me disse que era tudo inventado. No começo eles até tinham umas histórias interessantes, mas depois passaram apelar, com coisas muito absurdas. Uma delas dizia que havia um dinossauro no Lago Paranoá e que levantava à noite, e as pessoas viram esse monstro, tipo o monstro do Lago Ness. Na Globo, no Fantástico, em 1980, eles tinham um quadro chamado “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, que foi responsável por algumas noites insones. Eram reconstituição de histórias que as pessoas enviavam. Uma delas, que está no Youtube, parece que é a única disponível, é sobre uma família do interior de São Paulo que é visitada por uma mulher que é um fantasma. É com o (ator) Sebastião Vasconcelos. O detalhe é que esse quadro, “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, a ideia veio de um programa de rádio dos anos 1940, produzido e narrado pelo Almirante, aquele autor de sambas, um clássico brasileiro. Mesmo lance, reconstituição de casos fantasmagóricos. Esse programa tinha o mesmo nome, “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, era transmitido pela rádio Tupi, no Rio de Janeiro, e durou até o início da década de 1950. Era um programa com dramatização, orquestra, sonoplastia, música. Acho que o Fantástico pegou o mesmo nome e a mesma ideia desse programa.

BH – Todo esse terror fantástico exercia e exerce um fascínio, diferente do terror real que se apresenta no dia-a-dia, como acontece com os programas de casos policiais, muito comuns na tv. Isso parece que nunca vai acabar. No entanto, a proposta desses programas contemporâneos parece que é mais aterrorizar o cidadão comum com essas doses diárias de violência do que se valer da licença poética, não é verdade?

MA – Sim. A literatura faz isso de forma poética. Acaba que essas histórias de terror, de fantasmas, que estamos falando, são contos de fadas perto dessa realidade brutal.


BH – Acho que o mérito dessas histórias extraordinárias é podermos extrair uma essência humana que dignifique a existência, não é? Sem querer forçar a barra, dá para tirar algo desses programas policiais, onde os apresentadores parecem incentivar a Lei de Talião, a justiça com as próprias mãos? Seguindo em frente, gostaria que você falasse sobre “A Maldição de Fio Vilela”. Inevitável nessa novela uma certa influência do Noriel Vilela, o grande cantor, baixo-profundo, que foi membro dos Cantores de Ébano.



O CULTO A NORIEL VILELA


MA – (Fazendo a voz bem grave, primeiro verso de “Saudosa Bahia”): “Está fazendo três semanas que eu cheguei de lá”... É o grave mais interessante que existe na música popular brasileira.

BH – Ele apresenta um ponto de vista muito peculiar. Quase sempre é um preto velho falando. A letra de “Só o Ôme” é sensacional. O cara é mau marido, mau filho, puxa-saco do patrão, passou a perna no amigo e agora tá na pior. Ao que parece vai num terreiro e ouve do preto velho o conselho: “Ah, mon fio, do jeito que suncetá, só o ôme pode ajudar”. Ôme, no caso, é a entidade que o cidadão deve encontrar numa encruzilhada à meia-noite. “Destampa o marafo e chama o ôme”. Que roubada.

Marafo para ela e para ele
Marafo Zé do Caixão, edição de colecionador

Zé Pelintra
MA – Hahaha. O cara é um traste, “fez candonga de companheiro seu, fez feitiço em suncê”. Esse livro, “A Maldição de Fio Vilela”, ele surgiu de três inspirações para compor a personagem e o Noriel Viela foi fundamental. Todos os meus livros têm uma relação muito grande com a música. Nunca fui músico profissional, cheguei a estudar um pouco mas, sobretudo, escrevi sobre música, em jornal e no rádio. A música está em minha vida desde criança. Vários tipos de música, de rock’n’roll a blues, música brasileira pra caramba, música erudita, jazz, a música é uma referência muito forte na minha vida, então por que ela não seria na literatura? Várias histórias minhas surgiram a partir de alguma influência musical, não no sentido de pegar uma música e me inspirar na letra, mas no sentido de passar a energia da música para uma história. “A Maldição de Fio Vilela” tem isso. Vilela vem do Noriel Vilela. Três personagens me inspiraram, dois reais e um simbólico. Antes de conhecer o Noriel Vilela em seu trabalho solo, eu o conheci nos Cantores de Ébano, do maestro Nilo Amaro. Ele era uma das vozes. “A Lenda do Abaeté”, do Dorival Caymmi, com eles é fantástico. (Imitando novamente o baixo profundo): “No Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca...”. Um conjunto vocal brasileiro que tinha a influência americana do rhythm’n’blues, o jazz negro do final dos anos 50, assim como uma forte influência brasileira. Eu estava ouvindo bastante o Noriel Vilela. Juntei ele com o Zé Pelintra, uma entidade boêmia da umbanda, tanto que tem até uma imagem dele, na Lapa, no Rio de Janeiro. Do Zé Pelintra peguei um pouco do visual dele, o paletó branco, a cartola branca. Do Noriel, essa inspiração, um pouco da atmosfera sobrenatural, a voz grave. Quanto ao Fio, minha mãe mora em uma cidade do interior do Rio, chamada Rio Bonito. Ela mora na zona rural, um lugar chamado Nova Cidade. De vez em quando vou lá. Nessa época, estava indo bastante. E lá tinha um rapaz que se chamava Fio, na verdade Felipe, eu juntei os três, que são todos pessoas do bem. Só que o Fio Vilela é uma entidade do mal, que aparece nesse livro para roubar a alma das pessoas.

BH – Essa influência das religiões e cultos afro-brasileiros que aparecem no livro e nessas referências. Você frequenta os terreiros? É praticante da umbanda?

Vila Telebrasília, Brasília (DF)
MA – Não. Não tenho religião, não pratico nenhuma. Não tenho nada contra. Não me considero ateu. Uma época até me considerava, mas hoje não. Comecei a perceber que o ateísmo parece também com uma crença, cheio de dogmas. Talvez eu seja agnóstico, não tenho certeza. Há pouco tempo fui com uma prima em um terreiro de umbanda, na Vila Telebrasília.

BH – Com que finalidade você foi, o que estava rolando lá?

MA – Fui para conhecer. Era o dia em que você podia conversar com as entidades.

BH – Sério?

MA – Sim, tem todo um ritual. Você pega uma senha, para ser atendido. Eles fazem orações cristãs, rezam o Pai Nosso. Depois você pode conversar com pessoas que você olha e elas são absolutamente normais. Elas incorporam e você vai até elas e pode perguntar o que quiser. Eu falei com um senhor, que não ficou me dizendo coisas sobrenaturais, mas coisas sobre filosofia, compreensão, harmonia, paz, entendimento, a questão do amor. Isso que eu achei legal. Uma mensagem positiva, que poderia ter sido dita por um psicanalista...

BH – Uma coisa respeitosa.

MA – Sim. Nada de charlatanismo, nem sacrifício de animais, até porque eu jamais participaria de coisas assim. Sou a favor do direito dos animais.

BH – E você consegue identificar quem estava falando com você?

MA – Um preto velho, pelo que se coloca naquele ritual.

BH – Ele tinha um nome?

MA – Cada pessoa ali incorpora uma determinada entidade. Muito interessante. Estava ali um senhor branco, com cara de europeu, mas falando igual a um preto velho, fumando cachimbo.

BH – Para você o interesse é cultural?

MA – Sim, muito mais do que religioso.

BH – Igual aquele pessoal que diz “procure saber”...


MA – Exatamente. Essas religiões afro-brasileiras tem uma ligação muito forte com a música. Fui a Salvador, achei no Pelourinho uns cds e lps de candomblé, de música de terreiro. Tem uma coisa cultural muito forte, de dança, de expressão. Noriel Vilela é um caso. Embora não seja candomblé puro e tal, ele funde uma coisa mais pop, de sambalanço, de samba-rock. Noriel Vilela morreu cedo, em 1974. Ele teve um acidente em um dentista. Ele tomou um anestésico, teve uma reação alérgica, passou mal e morreu.

Tennessee Ernie Ford
BH – Caramba! Noriel também gravou, em português, uma versão para “Sixteen Tons”, sucesso em 1955 com o cantor norte-americano Tennessee Ernie Ford.

MA – Sim, “16 Toneladas”, um compacto. Essa versão, muito boa, toca até hoje nessas festas de samba-rock. Interessante é que o original é algo meio folk e o Noriel Vilela transformou a canção com letra e batida samba-rock. É um dos grandes sucessos do grupo Funk Como Le Gusta.

"Another day older and deeper in debt"

Contato do Marcelo Araújo: marcelomca1970@gmail.com

2 comentários:

  1. Heitor, queria agradecer muito por essa entrevista, que dá uma super-divulgada em meu trabalho!! Valeu pela atenção e espaço, super valorizado e refinado por sua rica cultura musical, artística, histórica, política e jornalística. Um grande abraço e sucesso pro blog!!! Marcelo Araújo

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  2. Você imitando o Noriel Vilela é impagável. Obrigado e keep on rocking, amigo.

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