quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Richard Feynman: "Inútil, definitivamente inútil"

“Nada existe senão átomos e vazio, tudo mais é opinião”. Demócrito c. 460-370 a.C.

“It’s all really there, the inconceivable nature of nature”. Richard Phillips Feynman (1918-1988)

Richard Feynman, "diamond in the rough"
E por falar em física de partículas, isto é, a que lida com a estrutura atômica da matéria, poucos curtiram tanto as impossibilidades aparentes e as sugestões incompreensíveis da mecânica quântica quanto o físico norte-americano, grande tocador de bongôs e figuraça Richard Feynman (1918-1988).

Playing bongos like ringing the bell
Curtiram porque não bastou elaborar as teorias mais complicadas e inacreditáveis, Feynman extrapolou o senso comum, como só fazem os artistas, ao adicionar, além de inteligência acima da média, uma personalidade excêntrica a todo esse contexto da Física enquanto ciência superior.

Sin-Itiro Tomonaga
Julian Schwinger
Nascido em Manhattan, mas criado junto ao mar, em Far Rockaway, Queens, New York, Richard Phillips Feynman ganhou o Prêmio Nobel de Física, em 1965, juntamente com os cientistas Sin-Itiro Tomonaga (1906-1979), e Julian Schwinger (1918-1994), pelo trabalho em eletrodinâmica quântica, no escopo do entendimento da física de partículas elementares.

O homem que virou selo
Se a presunção não for grande, grosso modo, digamos que a eletrodinâmica quântica estuda a radiação eletromagnética e a maneira como ela interage com as partículas eletricamente carregadas. Dizem que os cálculos dessa teoria chegam a ter acerto com dados experimentais na proporção de uma parte em um bilhão, fazendo com que seja a teoria mais precisa de toda a física.

Diagramas de Feynman
Em 1959, em uma famosa palestra, intitulada “There’s Plenty of Room at the Bottom”, Feynman predisse que a nanotecnologia seria uma realidade. Em suas palavras, seria possível escrever a Enciclopédia Britânica e seu conjunto de livros em uma cabeça de alfinete. À época, a humanidade estava vendo, estupefata, que era possível manipular a matéria em nível atômico. Na verdade, isso já vinha sendo feito há um certo tempo. Hoje, tudo é nano, caro Watson.


“The head of a pin is a sixteenth of an inch across. If you magnify it by 25,000 diameters, the area of the head of the pin is then equal to the area of all the pages of the Encyclopaedia Brittanica. Therefore, all it is necessary to do is to reduce in size all the writing in the Encyclopaedia by 25,000 times. Is that possible? The resolving power of the eye is about 1/120 of an inch---that is roughly the diameter of one of the little dots on the fine half-tone reproductions in the Encyclopaedia. This, when you demagnify it by 25,000 times, is still 80 angstroms in diameter---32 atoms across, in an ordinary metal. In other words, one of those dots still would contain in its area 1,000 atoms. So, each dot can easily be adjusted in size as required by the photoengraving, and there is no question that there is enough room on the head of a pin to put all of the Encyclopaedia Brittanica”.


Explosão da Challenger, em 28/01/1986
Impossível não comentar que Feynman fez parte do famoso Projeto Manhattan, aquele que culminou na criação das bombas atômicas usadas na II Guerra Mundial. Sua sabedoria e expertise também o levariam a ser escolhido pelo governo norte-americano para liderar grupo de trabalho criado para estudar o porquê do acidente com o ônibus espacial Challenger, em 1986. A nave explodiu poucos minutos depois de lançada, devido ao vazamento de combustível. Todos os astronautas morreram nesse episódio.

O jovem Feynman e Robert Oppenheimer, em Los Alamos
Aliás, quando da temporada em Los Alamos, junto a figuras como Robert Oppenheimer, e as coisas top secret envolvendo os estudos das bombas atômicas, o irreverente Feynman começou a achar tudo muito chato. Não deu outra, por brincadeira começou a desvendar os segredos de cadeados e gavetas fechadas. Os colegas cientistas chegaram a achar que havia um espião no pedaço. O próprio contando essas façanhas é algo completamente surreal.


Feynman e Arline viraram filme, em 1996, com Matthew Broderick e Patricia Arquette
Por último, mas não o mais importante, Richard Feynman teve dolorosa experiência pessoal, com o falecimento da primeira esposa Arline Greenbaum, em julho de 1945, em Albuquerque. Um mês após, presencia a explosão da primeira bomba atômica, em teste realizado no deserto de New Mexico. Sobre esse fato, comentou: “fui o único ser humano a ver a explosão a olho nu; os demais usavam óculos escuros”. Do entusiasmo à decepção: a segunda vez seria sobre o Japão.

No Rio de Janeiro, em 1952. Feynman é o quinto na fileira da direita
Com colegas do CBPF. Feynman é o sexto (e-d), na fileira de baixo
Encerrada a apresentação, passemos ao que aqui interessa, a estranha ligação que Feynman teve com o Brasil. Isso, uma das mentes mais brilhantes do século XX, Prêmio Nobel de Física, pai da nanotecnologia, figura proeminente do Instituto de Tecnologia da California (Caltech), professor destacado em Princeton e Cornell, e mestre em quebrar segredos de cofres, Richard Feynman morou no Rio de Janeiro no início dos anos 1950, tendo lecionado no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e na Universidade Federal do Rio de Janeiro.


O que se sucede está farta e saborosamente descrito no capítulo “O americano, outra vez!” (assim, em português e com exclamação), do livro “Surely You’re Joking, Mr Feynman” (no Brasil, “O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman! – As Estranhas Aventuras de Um Físico Excêntrico” [Ed. Campus], e “Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman” [Ed. UnB]; em Portugal, “Está a Brincar, Sr. Feynman!”).

A obra foi criada pelo amigo Ralph Leighton, camarada de tambores de Feynman, e filho Robert Leighton, colega na Caltech. Trata-se de depoimentos gravados em fitas ao longo de várias sessões de batucadas e depois compiladas por Ralph Leighton.

O título alude a um dia, quando o jovem Feynman – um cara não muito refinado, digamos – chega para estudar em Princeton, (“uma imitação de Oxford e Cambridge, incluindo o forçado sotaque britânico”), e é recebido com pompa e formalismo. No chá com o decano, a esposa deste pergunta a Feynman: “O senhor gostaria de chá com creme ou limão?”. Feynman: “os dois, obrigado”. E a mulher do decano: “Ah, ah, ah. Certamente o senhor está brincando, Sr. Feynman”.


Como chegou ao Brasil? Aparentemente a primeira dica de que deveria dar um rolê por essas bandas veio do inacreditável conselho de um cara para quem deu carona, quando lecionava na Cornell University, em Ithaca (New York). O sujeito falou: vá para a América do Sul, lá é tudo de bom. Feynman gostou e decidiu ter aulas de espanhol. Mas quando foi se matricular, viu uma gatona (no original: “a pneumatic blonde”, melhor traduzindo: uma louraça rechonchuda) se dirigindo para as aulas de português. Não teve dúvida, pôs-se na fila atrás da moça. O pudor anglo-saxão, no entanto, falou mais alto e debaixo de muito arrependimento, nosso herói foi aprender espanhol.

Na Espanha, "Esta Usted de Broma Sr Feynman!"

Em seguida, num encontro de físicos em New York, Feynman sentou-se ao lado do físico nuclear brasileiro Jayme Tiomno (1920-2011). Este pergunta a Feynman: “O que você vai fazer no verão?”. Feynman: “Estou pensando em visitar a América do Sul”. Tiomno: “Por que você não visita o Brasil? Posso lhe conseguir um lugar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas”.

Feynman vestido de diabo, no Carnaval de 1952
Assim, em 1951, Richard Feynman passa umas semanas muito loucas no Rio de Janeiro, como professor visitante. Uma luta constante com a língua é o que se sucede. Imaginem ensinar física quântica em inglês para falantes de português. Ou o contrário: Feynman tentando ensinar física quântica em português ziriguidum.

Hotel Miramar, no Posto 5, Copacabana
Feynman gosta tanto da experiência que resolve retornar ao Rio menos de um ano depois, desta vez para lecionar na Universidade do Rio de Janeiro (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Sortudo, foi morar no Hotel Miramar, na Avenida Atlântica (Copacabana), ocupando um quarto no décimo-terceiro andar, “de onde podia ver o mar e as garotas na praia”, óbvio.

Sua Excelência, o pandeiro
Cair no samba foi um passo. Feynman tinha falado para alguém na Embaixada Americana que gostava da música brasileira. Recebeu convite para ir a um ensaio de um pequeno grupo em um apartamento e caiu de amores por um pandeiro. Na verdade, ficou intrigado com a maneira como um cara tocava o instrumento.


Pronto, o americano passou a frequentar ensaios nos becos do bairro e virou integrante do bloco Os Farsantes de Copacabana (Fakers From Copacabana). Enturmado, seu instrumento passou a ser uma frigideira. Em certo ensaio, uns sessenta integrantes batucando, o mestre da bateria manda parar tudo. Tem algo errado com a frigideira. Fala o cara, um típico big black carioca guy: “O americano, outra vez!” (“The American again!”).

Intimidado? Nada. Feynman praticou e praticou e praticou. Tocou frigideira em festinha particular e acabou virando referência no bloco: “I became a rather successful frigideira player”. Com o Carnaval de 1952 pegando fogo, Feynman foi às alturas quando desfilou com o bloco pelas ruas de Copacabana, naquele cenário conhecido até hoje: aparece gente de tudo quanto é lado, todo mundo corre para as janelas dos prédios, para o trânsito, até a polícia aparece para organizar o desfile, todo mundo feliz, tudo muito informal, the Brazilian way of life, you know what I mean.


Umas pessoas da embaixada viram o americano todo entrosado no meio da multidão e resolveram mandar um bilhete, dando entender que o professor estaria ajudando nas relações bilaterais Brasil-Estados Unidos, ora vejam. Naquele carnaval, um dos melhores tocadores de frigideira foi o mestre da física quântica, Sr. Richard Feynman, now master of the frying pan!

Esse período no Rio, Feynman o descreve com muito carinho. Mas como não veio só para se divertir, guardou na lembrança algo muito estranho, e que depois descreveu no livro, a maneira como os estudantes brasileiros aprendiam as coisas. Melhor dizendo, que diabo de ensino é esse que se desenvolve neste país chamado Brasil?

Montaigne perdeu os cabelos com o estilo decoreba
Feynman se deparou com o terrível estilo decoreba, algo que já tinha feito muitos anos atrás o filósofo Michel de Montaigne perder os cabelos. No curso sobre eletricidade e magnetismo, repleto de equações de Maxwell, Feynman ficou intrigado:


“Descobri um fenômeno muito estranho: eu podia fazer uma pergunta e os alunos respondiam imediatamente. Mas quando eu fizesse a pergunta de novo – o mesmo assunto e a mesma pergunta, até onde eu conseguia –, eles simplesmente não conseguiam responder! Por exemplo, uma vez eu estava falando sobre luz polarizada e dei a eles alguns filmes polaróide. 

O polaróide só passa luz cujo vetor elétrico esteja em uma determinada direção; então expliquei como se pode dizer em qual direção a luz está polarizada, baseando-se em se o polaróide é escuro ou claro. 

Primeiro pegamos duas filas de polaróide e giramos até que elas deixassem passar a maior parte da luz. A partir disso, podíamos dizer que as duas fitas estavam admitindo a luz polarizada na mesma direção – o que passou por um pedaço de polaróide também poderia passar pelo outro. Mas, então, perguntei como se poderia dizer a direção absoluta da polarização a partir de um único polaróide. 

Eles não faziam a menor idéia. 

Eu sabia que havia um pouco de ingenuidade; então dei uma pista: “Olhe a luz refletida da baía lá fora”. 

Ninguém disse nada. 

Então eu disse: “Vocês já ouviram falar do Ângulo de Brewster?” 

– Sim, senhor! O Ângulo de Brewster é o ângulo no qual a luz refletida de um meio com um índice de refração é completamente polarizada. 

– E em que direção a luz é polarizada quando é refletida? 

– A luz é polarizada perpendicular ao plano de reflexão, senhor. 
Mesmo hoje em dia, eu tenho de pensar; eles sabiam fácil! Eles sabiam até a tangente do ângulo igual ao índice! Eu disse: “Bem?” 

Nada ainda. Eles tinham simplesmente me dito que a luz refletida de um meio com um índice, tal como a baía lá fora, era polarizada: eles tinham me dito até em qual direção ela estava polarizada. 

Eu disse: “Olhem a baía lá fora, pelo polaróide. Agora virem o polaróide”. 

– “Ah! Está polarizada”!, eles disseram. 

Depois de muita investigação, finalmente descobri que os estudantes tinham decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer. Quando eles ouviram “luz que é refletida de um meio com um índice”, eles não sabiam que isso significava um material como a água. Eles não sabiam que a “direção da luz” é a direção na qual você vê alguma coisa quando está olhando, e assim por diante. 

Tudo estava totalmente decorado, mas nada havia sido traduzido em palavras que fizessem sentido. Assim, se eu perguntasse: “O que é o Ângulo de Brewster?”, eu estava entrando no computador com a senha correta. Mas se eu digo: “Observe a água”, nada acontece – eles não têm nada sob o comando “Observe a água”. 

Depois participei de uma palestra na faculdade de engenharia. A palestra foi assim: “Dois corpos… são considerados equivalentes… se torques iguais… produzirem… aceleração igual. Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem aceleração igual”. 

Os estudantes estavam todos sentados lá fazendo anotações e, quando o professor repetia a frase, checavam para ter certeza de que haviam anotado certo. Então eles anotavam a próxima frase, e a outra, e a outra. Eu era o único que sabia que o professor estava falando sobre objetos com o mesmo momento de inércia e era difícil descobrir isso. 

Eu não conseguia ver como eles aprenderiam qualquer coisa daquilo. Ele estava falando sobre momentos de inércia, mas não se discutia quão difícil é empurrar uma porta para abrir quando se coloca muito peso do lado de fora, em comparação quando você coloca perto da dobradiça – nada! 

Depois da palestra, falei com um estudante: “Vocês fizeram uma porção de anotações – o que vão fazer com elas?”.

– Ah, nós as estudamos, ele diz. Nós teremos uma prova. 

– E como vai ser a prova? 

– Muito fácil. Eu posso dizer agora uma das questões. Ele olha em seu caderno e diz: “Quando dois corpos são equivalentes?”. E a resposta é: “Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem aceleração igual”. Então, você vê, eles podiam passar nas provas, “aprender” essa coisa toda e não saber nada, exceto o que eles tinham decorado”.


Não vamos estragar a leitura de quem pensa em ir atrás do livro e nem alongar demais tudo isso, mas fica aqui o registro de que Feynman faz uma análise crítica das mais contundentes sobre o ensino brasileiro, por tabela o nosso jeito brasileiro, nossa cultura brasileira, no que tange nossa “estranha forma de pensar”, “essa forma esquisita de auto propagar a ‘educação’, que é inútil, definitivamente inútil”. Estamos falando de 1952. O grifo é deste redator.

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