segunda-feira, 19 de outubro de 2015

One of my heroes: Vinicius de Moraes, 102 anos

Vinicius de Moraes, circa 1938
Este 19 de outubro é aniversário de Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes, o Vinicius de Moraes (1913-1980), um dos maiores entre os maiores, sujeito múltiplo na vida: poeta, compositor, cantor, jornalista, crítico de cinema, diplomata, dramaturgo, boêmio, mulherengo, virtuose da própria tristeza e solidão, e que, como poucos, amou daquela vez (sempre) como se fosse a última.

De Vinicius, o mais o punk entre os emepebistas, já se disse tudo e mais um pouco, o melhor a fazer é folhear um livro seu, ler um poema, ouvir uma canção, tudo funciona como antídoto antimonotonia e é alento contra a mediocridade avassaladora que nos persegue e engolfa. Uma dose diária de Vinicius é a lufada de ar fresco e saudável em meio a esse tempo abafado, doentio e insalubre.

Em Brasília, Vinicius de Moraes escreveu o nome no Livro de Ouro da cidade. No capítulo pós-Gênese, o que trata dos anos, dias pré-inauguração, está lá o Poetinha sorvendo seu uísque e cigarro e testemunhando o prego a prego, tijolo por tijolo, cimento e ferro brotando do barro vermelho do Cerrado brasileiro.

Tom e Vinicius, aventura épica, em 1959
Em 1959, fato contado e recontado, Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim pegaram um Fusca e, sabe-se lá como, rodaram uma distância épica, por estradas precárias, do Rio de Janeiro a Brasília, então um canteiro de obras. Motivo da nobre visita: passar dez dias, como hóspedes, no Palácio do Catetinho, o “palácio de tábuas”, a pretexto de aqui sentir o clima e compor, mediante encomenda oficial, a Sinfonia da Alvorada, peça para orquestra e luzes, que deveria ser apresentada na Praça dos Três Poderes, na inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960.

Deveria, pois, apesar de terem completado a tarefa, o espetáculo de “son et lumière”, acabou substituído. Consta que a empresa francesa Clemançon, responsável pela montagem, acabou, por diversos motivos, não entregando o prometido.







A inauguração, que durou três dias, teve, no dia 21 de abril, recepção no Palácio do Planalto, oferecida pelo presidente Juscelino Kubitschek; em 22 de abril, “concerto-sinfônico-coral” de música brasileira sob regência do maestro Eleazar de Carvalho; e no dia seguinte, o programa foi o “Festival de Brasília: Espetáculo de encerramento dos atos comemorativos da Nova Capital, de autoria do Acadêmico Josué Montello”. Música de Heitor Villa-Lobos e Heckel Tavares, sob direção de Chianca de Garcia.

Tom e Vinicius no olha d'água do Catetinho
Os dias no Catetinho renderam relatos e boas lembranças de Vinicius e Tom. O olho d’água, aos fundos do lugar, serviu de inspiração para “Água de Beber”. No anedotário, consta que Tom e Vinicius foram ao regato, atraídos pelo barulho da água corrente. Ao perguntarem a um capataz se aquela água era potável, ouviram a frase: “É água de beber, camará (camarada)”. Daí surgiram os famosos versos, que viraram até “Water To Drink”, quando a letra ganhou versão em inglês por Norman Gimbel.


Escreveu o Poetinha: “Dez dias ficamos assim no ‘Catetinho’, neste dolce far niente de fazer uma sinfonia, com sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar como íamos de trabalho. De vez em quando dávamos um pulo à cidade para ver os amigos Oscar Niemeyer, José (Juca) Ferreira de Castro Chaves, João Milton Prates, os bravos pioneiros de Brasília, os homens que, com o Presidente Kubitschek, primeiro puseram os pés no planalto. João Milton Prates, herói da FAB, antigo piloto e amigo de JK, grande e bom amigo nosso, esse vinha sempre nos ver, com vitualhas e licores, e tomava pela obra em progresso um interesse quase criador. Um dia exibiu-nos, de sua carteira, a histórica promissória de quinhentos contos, firmada por ele e Niemeyer, com a qual puderam erguer em dez dias o incomparável ‘Catetinho’. Ao grande Presidente e a todos esses homens, que não têm frio nos olhos, mas cujos olhos se umedeceram ao ouvirem pela primeira vez ao piano os temas iniciais da ‘Sinfonia da Alvorada’, a nossa comovida gratidão, não só pela confiança que tiveram em nós, como pelo exemplo que nos deram de ânimo, modéstia e espírito de luta”.


O relato de Antonio Carlos Jobim: “Setembro, sertão no estio. Frio seco. Altitude aproximada: 1.200 metros. Ar transparente, céu azul profundo, primavera e pássaros se namorando. Campos gerais, chapadões dos gerais. Cerrado e estirões de mata à beira dos rios. Horizonte: 360 graus. No fundo do ‘Catetinho’ há um capão de árvores altas por onde passa um córrego de água boa e fria. Seguindo-se a água sai-se num campo onde fui muitas vezes escutar o pio das perdizes. Silêncio nos campos claros, batidos de sol. De repente, de perto, como um grito, veio o piado do macho chamando a fêmea. Silêncio. E de longe chega a resposta. É uma conversa que parece vir do fundo dos tempos. Aqueles dois pontos de som escondidos no capim se procuram, aproximam-se, encontram-se e cantam juntos. Uma nuvem passa e sua sombra corre pelos campos. O vento faz ondas nos penachos do capim: dourado, verde, dourado…”.


O resto é história e agora saudade, saudade dessa dupla, em que pese as toneladas de críticas bestas a Vinicius, por ser mulherengo, beberrão e tal; e ao Tom por oferecer uma música brasileira para americano ouvir. Os cães ladram e a caravana passa. Parafraseando Ezra Pound: houvesse em nós mais canção, menos temas, então se acabariam minhas penas, meus defeitos sanados em poemas...

Falar nisso, de Vinicius, volta e meia salta um verso, uma estrofe, um poema favorito. O de hoje, chama-se “Elegia Desesperada”, também conhecido como “O Desespero da Piedade”.

Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina 
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam 
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse 
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!  

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