quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Há um lugar para nós

Se tiver pressa, por favor pare por aqui. Se tiver tempo sobrando, pegue um café, um chá ou um copo de água, quem sabe um vinho, e reflita por um momento.

Quando se adentra em um recinto, percebe-se pela atmosfera a vibração espiritual que dele emana. É assim numa igreja, num estádio de futebol, num hospital, num velório, numa prisão. A vibração causa paz e conforto ou o contrário, cria barreiras, impele a vontade repulsiva, causa baixo astral.


Pois há um lugar neste Distrito Federal, um pouco como diz na letra de “Somewhere (There’s a Place For Us)” (Leonard Bernstein/Stephen Sondheim), do musical West Side Story, um lugar de quietude e paz, onde, sob o domínio da música, almeja-se a elevação do espírito e uma compreensão maior da comunhão e entendimento entre as pessoas.

Casa do Piano: santuário da música
Esse lugar é a Casa do Piano, espaço que o técnico-afinador de pianos Rogério Resende mantém em uma chácara distante 30 quilômetros do centro de Brasília. Misto de oficina, fábrica e depósito, a Casa do Piano, com a licença do exagero, é um santuário da música, onde repousam as mais diferentes máquinas chamadas piano. Pianos acústicos, que fique bem claro. E além disso, pela atmosfera, percebe-se um ambiente de paz, onde pode-se dizer: neste lugar há de fato progresso espiritual.

Rogério Resende: mestre do piano
De diferentes cores, diferentes modelos e épocas, os pianos cuidados pelo Rogério Resende na Pianolândia, digo, na Casa do Piano, ganham status de máquinas do bem, tal é o cuidado que dispensa a cada instrumento que passa por suas mãos e pelas mãos de seus técnicos colaboradores. Em síntese, não é possível que esses instrumentos estejam ali para praticar algum mal, isto é, que sejam usados com algum fim escuso que não seja o encantamento provocado pela vibração da boa música.

Além de ser um afinador dos mais solicitados, com uma folha de serviços de mais de 30 anos, deixando tinindo o piano de músicos que passam por Brasília, artistas tão diversos como Tom Jobim, Paul McCartney, João Carlos Martins, Eudóxia de Barros, Taiguara, Richard Clayderman, Nelson Ayres, André Mehmari, Joel Bello Soares, dentre tantos, Rogério Resende é notável restaurador de pianos, profissional como poucos dedicados à manutenção e renascimento dessas joias da música percussiva.

Mas acima de tudo é um gentleman, pessoa que, numa calma zen, inspira confiança, sabedoria e humildade, tratando com respeito e igualdade desde o mais afamado músico ao visitante, digamos, comum que atravessa os umbrais da Casa do Piano.

Aqui respira-se paz e música

Explicando a anatomia do piano
Rogério Resende costuma receber visitantes na Casa do Piano. Não apenas músicos, melhor dizendo, pianistas, que querem conhecer o lugar dedicado ao rei dos instrumentos musicais, ou que pretendem experimentar um ou outro modelo. Recebe também estudantes, sobretudo das escolas públicas do Distrito Federal, crianças, adolescentes e adultos com muito, com pouco ou com nenhum contato com essas maravilhosas máquinas de fazer música.

Na estufa de pintura
Foi assim no estranho setembro de 2015 e seria fato corriqueiro de ser comentado, mas que, dadas as circunstâncias, merece o registro neste espaço. Estranho porque, em época de enorme seca e calor, nos dias que findam o típico inverno do Cerrado brasileiro, a temperatura e umidade foram gentis, em que pese alguma chuva fora de contexto. Sem dúvidas que o ambiente e o meio ambiente nos influenciam.

Neste mês em questão, a Casa do Piano recebeu comitivas de três diferentes escolas, cada uma trazendo pessoas de diferentes idades, contextos socioculturais e experiências com a música. Segue aqui um pequeno relato deste que testemunhou parte essas experiências.

Desvendando os segredos de uma pianola
À máquina de encordoamento
Alunos assistidos pela organização não-governamental Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes); estudantes do Centro de Ensino Fundamental Cerâmica São Paulo, da região administrativa de São Sebastião; e alunos que frequentam o projeto de educação musical Santa Maria em Pauta, de Santa Maria, outra cidade-satélite, ou melhor, outra região administrativa de Brasília, visitaram a Casa do Piano, tendo como ponto de partida o interesse de brasileiros que residem nos Estados Unidos e, dispostos a ajudar o projeto de extensão da Casa do Piano, arrumaram um jeito de enviar recursos para viabilizar as visitas. Um tantinho para financiar uma micro revolução. E que revolução!

Joia restaurada
Nessas visitas, Rogério Resende segue roteiro em que explana sobre o trabalho e as frentes de atuação da Casa do Piano: afinação, restauração e locação de pianos. O “pianista que pulou para dentro do piano”, como costuma dizer, não se furta a tocar um pouco para a seleta plateia, muito embora prefira que algum pianista o faça.

Cada detalhe é precioso
Os convidados seguem em passeio pelas dependências da Casa do Piano, observando os diferentes aspectos que envolvem a história e a manutenção dos instrumentos. Da evolução do mecanismo percussivo, passando pela estufa de pintura e oficina onde os instrumentos são desmontados e montados, tudo no passeio é encanto.

Máquina para virar o piano
Máquina para encordoar os pianos, máquina para carregar os pianos. Rogério explica ao visitante como cada coisa funciona. Seria banal, não fosse o fato de lembrarmos que, nas famosas fábricas de piano mundo afora, essas coisas são tratadas como segredos industriais que nunca, jamais, em hipótese alguma são revelados. Detalhe: as principais máquinas que ajudam a desvendar a anatomia do piano foram concebidas pelo próprio Rogério Resende. Concebidas, não. Recebidas, como gosta de frisar o técnico-afinador, na verdade, um mestre do ofício, artista do mais alto nível e humanista do mais alto gabarito.

À porta do Museu Itinerante do Piano
Não bastasse uma visita à oficina causar espanto, o que dizer do Museu Itinerante do Piano, carreta tipo baú já mencionada neste espaço? Basta saber que Rogério e equipe conceberam (receberam?) uma carreta capaz de transportar cerca de 15 pianos, de diferentes modelos e épocas que, juntos, ajudam a contar a história desse instrumento, invenção de 1700, do italiano Bartolomeo Cristofori.

Não parece mas é uma carreta adaptada
Uma casinha para o melhor amigo do pianista
Rogério Resende e Tomás Patriota ao piano duplo
Pedalando na pianola
Um piano com uma casinha para o cachorro, o melhor amigo do pianista; um piano duplo, com dois teclados em lados opostos, podendo abrigar um, dois, três ou quatro pianistas ao mesmo tempo; pianolas como a gente vê no Pica-Pau, só o Museu Itinerante do Piano tem.

E se não bastasse o encantamento desse lugar, algumas surpresas elevam a experiência a outra dimensão.

Diego: um canto para o Rogério
Um abraço de um novo amigo
Na visita do grupo de Santa Maria, isto é, dos alunos do projeto Santa Maria em Pauta, um dos meninos, Diego, não se conteve e, provavelmente feliz com a visita, revelou que algo acontecera naquele momento, capaz de fazê-lo ver a vida de outra forma. Sabendo que era aniversário de Rogério, Diego cantou à capella, uma canção indecifrável, momento de intensa emoção para todos os presentes.

Professor Ederson: improviso para o Rogério
O professor Ederson Silva, que acompanhava seus alunos de Santa Maria, também capitulou diante da experiência e ofereceu aos presentes um “Improviso para Rogério”: sentou a um dos belos pianos de cauda e pôs-se a dedilhar melodia executada ao calor da inspiração.

Amigos encantados
Ah, se o mundo inteiro nos pudesse ouvir.... Naquele dia, enquanto a cidade vivia a vida de caos e agitação, havia um lugar de quietude e paz. “Enquanto oito puxam para um lado, dois puxam para o outro”, afirma mestre Rogério, na certeza de que uma hora um dos oito passará para o outro lado.



5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pela reportagem. É como se eu fechasse os olhos e estivesse de novo nesta visita inesquecível de tantas emoções e aprendizado.

    ResponderExcluir
  3. Ler essa reportagem me fes pensar em minha infância. Na pureza de uma criança o som do piano ao fundo nos inspira a sermos bons.

    ResponderExcluir
  4. Ler essa reportagem me fes pensar em minha infância. Na pureza de uma criança o som do piano ao fundo nos inspira a sermos bons.

    ResponderExcluir
  5. Quem vai à Casa do Piano e ouve o Rogério falando, percebe que a mensagem de amor, paz e respeito ao próximo não é dita em vão. Além do mais, de que vale a música se não houver ouvidos sensíveis que saibam ouvir?

    ResponderExcluir