Novamente o material aqui apresentado é uma remistura, como dizem os portugueses. Um remix, como preferem os brasileiros que não vivem sem um anglicismo. A entrevista que segue abaixo, com o jovem pianista brasiliense Pablo Marquine, compositor e mestrando de Música na Universidade de Brasília (UnB), foi feita para divulgação na revista Roteiro Brasília e pode ser conferida
aqui.
Em 8 de julho de 2015, Pablo Marquine deu um concerto (desculpem a expressão), um recital, no auditório de música da Universidade de Brasília (UnB). Nesse dia, Marquine tocou peças de Claudio Santoro (Manaus, 1919 – Brasília, 1989), que condizem com a investigação acadêmica que vem empreendendo sobre a obra para piano solo do maestro e compositor que empresta o nome ao Teatro Nacional de Brasília.
Na plateia, além de familiares e admiradores estava a viúva de Claudio Santoro, a coreógrafa e bailarina Gisèle Santoro. Claudio Santoro foi o organizador e também diretor do Departamento de Música da UnB. Após o recital, momento histórico, Marquine entregou à Gisèle cópia da reedição da Sonata 1942: fez chegar às mãos dos herdeiros de Santoro a partitura devidamente revisada a partir de quase ilegíveis manuscritos à lápis de uma peça, que em princípio é dissonante aos ouvidos, mas jamais aborrecida ao ouvinte.
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Gisèle Santoro e Pablo Marquine |
A apresentação pode ser vista
aqui.
Para este ouvinte, aliás, foi inevitável a associação dessa música para piano, de um compositor plenamente identificado com a cidade, com os retratos que agora são um clichê de Brasília: o concreto, o asfalto, os edifícios, o trânsito cheio, a cidade, muitas pessoas passando anônimas, todos projetados no cenário de sol e céu azul e horizonte. Só que estamos falando de uma peça composta em São Paulo, em 1942. Dissonante, muito dissonante.
Talvez melhor se caracterizem como trilha sonora para Brasília, cidade projetada e tornada real, os Prelúdios, que correspondem à fase de transição e à fase nacionalista do compositor e maestro. Como estamos sozinhos no meio do cerrado, dá para falar certa bobagem sem medo de reprimenda: esses Prelúdios de Santoro lembram o impressionismo de Ravel, Debussy, Erik Satie. Fragmentos de melodias de quase canções, perfeitas para ouvir enquanto a chuva faz seu trabalho lá fora. Ou quando o dia está prestes a amanhecer e a cidade quieta e seu céu avassalador te convidam a pensar e meditar em silêncio.
O programa da Série Mini Recitais, Música em Contexto, o Piano de Claudio Santoro, apresentado por Pablo Marquine foi o seguinte:
1) Sonata 1942 (São Paulo, 29/01/1942) (Ed. Pablo Marquine)
I Movimento – Lento
II Movimento – Alegre e Brincando
II Movimento – Muito Lento
2) Prelúdios - 1ª Série (Ed. Savart)
Prelúdio N°3 (Lausanne, 10/06/1948)
3) Prelúdios 2ª Série - 1° Caderno (Ed. Savart)
Prelúdio N° 1 (Leningrado, 16/05/1957)
Prelúdio N° 2 (Leningrado, 16/05/1957)
Prelúdio N° 3 (Moscou, 03/1958)
Prelúdio N° 6 (Milão, 14/12/1958)
4) Balada (Ed. Savart) (Schrisheim, 07/11/1967).
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Claudio Santoro |
Vejamos um breve resumo, para melhor entender o trabalho de Pablo Marquine. Claudio Franco de Sá Santoro (Manaus, 23/11/1919 – Brasília, 27/03/1989), muito prazer, é um dos grandes nomes da música erudita feita no século XX, no Brasil. Inicialmente foi violinista da Orquestra Sinfônica Brasileira. Com a ajuda do teuto-brasileiro Hans-Joachim Koellreutter (uma das pedras fundamentais da nossa música; para ele Tom Jobim tirava o chapéu), enveredou pelo dodecafonismo, estilo de composição propalado pelo austríaco Arnold Schöenberg. Em Paris, Santoro foi aluno de regência de Nadia Boulanger.
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Hans-Joachim Koellreuter |
Claudio Santoro viu a guerra devastar a Europa e do que é capaz o homem em sua prepotência e arrogância. Abandonou o dodecafonismo e mergulhou no nacionalismo. Em 1951, compôs o Canto de Amor e Paz, obra que estreou com a Orquestra Sinfônica Brasileira, sob regência de Eleazar de Carvalho, e que lhe rendeu o Prêmio Internacional da Paz, concedido pelo Conselho Mundial da Paz, em Viena (Áustria).
Entre 1957 e 1950, com o irresistível apelo da bossa-nova, compôs junto com Vinicius de Moraes as Canções de Amor. Volta e meia alguém lembra o quão belas são essas canções e as gravam junto aos Prelúdios, como se estes fossem um complemento daqueles.
Dentre tantas belas gravações de canto e piano das canções desse ciclo, destaque para a soprano Maria Lucia Godoy, que gravou “Acalanto da Rosa”, “Luar de Meu Bem” e “Pregão da Saudade”, no LP “O Canto da Amazônia” (1969).
Aqui, o
“Acalanto da Rosa”, com a mezzo soprano Janete Dornelas e o maestro Claudio Cohen.
Um salto no tempo e estamos em 1989. O jornal Folha de S.Paulo, em sua edição de 28 de março de 1989, deu a seguinte notícia, à página 3, do caderno Ilustrada:
“Claudio Santoro morre durante o ensaio de “Bolero”
Da Sucursal de Brasília
Morreu ontem, aos 69 anos de idade, o maestro e compositor Claudio Santoro, um dos mais respeitados músicos brasileiros no exterior, regente da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional (OSTN) e professor da Escola de Música da Universidade de Brasília. Santoro teve um derrame cerebral durante o ensaio do “Bolero”, do francês Maurice Ravel, uma das músicas que a orquestra apresentaria hoje à noite no concerto em homenagem aos 200 anos da Revolução Francesa. Levado imediatamente para o Hospital de Base de Brasília, o compositor morreu antes de ser atendido.
No mesmo espaço, a reportagem do jornal ouviu personalidades acerca da morte de Santoro. Um dos ouvidos, Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), afirmou:
"Claudio Santoro foi o compositor que com maior competência revelou ao meio musical brasileiro o espírito contemporâneo da música. Quando era meu aluno, em 1939, ele mesmo mostrou uma tendência à composição serial. Deixou uma obra enorme, eclética e muito considerável. Foi um homem sem concessões a ideias medíocres e oportunistas”.
Feitas as considerações, temos o seguinte para refletir:
Para a maioria, música se resume a música boa e música ruim. No entanto, sabemos, tal definição e tal dicotomia, ainda que resumo de um grande dilema cultural, parecem ser visões muito simplórias de uma situação. Você gosta ou não gosta de heavy metal e ponto. Mas veja, os gostos musicais, no fundo, provêm de conhecimentos, experiências socioculturais nas quais nos inserimos.
Vamos lá, pensar não dói, quem faz música, o faz pela utilização dos sons, seguindo parâmetros da cultura e da pessoalidade. No caso de sons musicais que se ligam a letras e viram canções, a complexidade aumenta porque essas coisas carregam mensagens e significados. Voltando aos parâmetros da cultura, esses são determinantes nesse fazer musical. Não é a cultura que dá os referenciais e os instrumentos materiais e simbólicos para que cada indivíduo possa criar e direcionar suas criações? No segundo caso, a questão da pessoalidade, temos a relação de quem vivencia a música, igualmente condição
sine qua non desse fazer musical. Falamos da matéria musical em si, por que é este ou aquele gênero, este ou aquele estilo, e novamente como essa rede de significados são construídos no contexto social.
Se olharmos pelo lado da academia, dos estudos sistematizados que dão conta dos significados e sentidos da música, temos um vasto mundo de dilemas, explicações, teorias e proposições disponíveis. Uma disciplina inteira, aliás, a psicologia histórico-cultural, se atém a estudar esses significados e sentidos. Ademais, essas duas coisas pertencem ao campo dos estudos linguísticos (ou da semiótica, como preferem Ferdinand de Saussure & companhia).
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Significado e sentido em Santoro |
Claudio Santoro, como veremos nesta entrevista com o pianista e compositor brasiliense Pablo Marquine, merece a livre audição e o estudo profundo.
Blog do Hektor – Como começou o seu interesse pela obra do Claudio Santoro?
Pablo Marquine – Começou quando eu era criança. O Prelúdio N° 7 foi uma das primeiras obras dele que eu toquei, peça que minha mãe adorava, e também a Paulistana N°1. Conheci a obra tocando e não ouvindo gravação em disco, mesmo porque não é fácil o acesso à obra em áudio do Santoro. Tem aí uma questão histórica de embargo, um outro assunto a ser tratado. Tive a sorte de conhecer Santoro, porque minha professora Aglaia Souza, que me aceitou na Escola de Música, quando entrei aos 11 anos de idade, fez uma homenagem ao Claudio Santoro, um recital, e como tinha gostado muito do meu desenvolvimento, apesar de ser o primeiro semestre, ela me “deu” um dos Prelúdios que mais gostava, e as Paulistanas também. Eram músicas muito bonitas, mas eu não sabia quem era Claudio Santoro. Minha mãe, que adorava as obras, pedia sempre para eu tocá-las muitas vezes. O interessante é que cada vez que tocava, era possível ver algo de diferente nessas obras. Ela falava isso para mim, que havia algo de especial na obra do Santoro. Não era o jeito de tocar, mas uma coisa dentro da própria obra. Ela sempre ficava muito impressionada, aí eu comecei a ter isso com o Santoro desde criança.
BH – E o que é “isso”, exatamente, você sabe dizer?
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Santoro: paixão |
PM – É por causa disso que estou fazendo esse trabalho. Como eu investigo a produção de sentido e significado na obra dele para piano? Essa inquietação, esse incômodo, surgiu desde quando eu era criança. Tem algo de apaixonante nisso tudo. Aliás, se tem uma palavra que pode definir o Santoro, essa palavra é a paixão. Não importa em qual fase ele esteja, o momento estético vivido, em Santoro sempre vai haver a paixão, uma acuidade retórica para persuadir o ouvinte e causar emoção. Independentemente se é música eletroacústica, ou música aleatória. Vou ser sincero: não conheço essas qualidades em nenhum outro compositor brasileiro.
BH – Nem em Villa-Lobos?
PM – Nem Villa-Lobos. Existe um lado, o da surpresa por meio do que a pessoa conhece, e também existe o lado do que é comum e a pessoa conhece. O Santoro está no primeiro caso. Ele consegue te surpreender tirando algo que vem de dentro. Villa-Lobos é o contrário, ele consegue te emocionar com o que é mais comum. Melhor dizendo, em Santoro, essa acuidade do discurso musical, essa proficiência, significam que, independente da técnica composicional e da linguagem, é possível emocionar o ouvinte. Isso é paixão. Nesse processo de aprendizado, eu percebi o quanto Santoro amava Bach, isto é, o quanto é possível identificar em sua música a presença de Johann Sebastian Bach, não só no contraponto, mas nas ideias musicais. Conversando com a Gisèle Santoro, ela me confirmou isso, que ele gostava muito de Bach.
BH – Isso está explícito nas obras para piano de Santoro?
PM – Sim. Pegue os Prelúdios, por exemplo, da terceira fase, a fase nacionalista. Eles têm um caráter muito semelhante à bossa-nova, mas se observarmos com mais cuidado veremos um trabalho contrapontístico muito bem feito.
BH – Um detalhe que é próprio do fazer na música erudita.
PM – Isso, próprio da música erudita, de você não somente pensar e refletir sobre o que está sendo dito, mas pensar com o máximo da acuidade intelectual, fato que se reflete em todas as fases da produção de Santoro. Além do mais, o Santoro é um para piano, para orquestra ele é outro, assim como ele é diferente para cada instrumento para o qual escreveu. Ele tem essa diversidade incrível.
BH – Em todas as fases ele compôs para piano?
PM – A obra para piano abarca todas as fases, inclusive a eletroacústica, que historicamente está contida na última fase, quando Santoro estava exilado em Berlim. Quando retorna, no final da década de 1970, ele cria a Orquestra do Teatro Nacional, dentre outras coisas, e começa a voltar a uma mistura de serialismo, politonalismo, raízes nacionais, ele faz uma mescla de um discurso nacional próprio.
BH – Santoro estudou com Karlheinz Stockhausen?
PM – Não, ele estudou em Dammstadt. Santoro na verdade aprendeu música fazendo.
BH – Como você destaca as fases de Santoro?
PM – Primeira fase foi a serial, dodecafônica. Engraçado é que ele tem um serialismo peculiar. Ele foi orientado por Koellreuter durante um ano e meio, no Rio de Janeiro. Em 1942, ele já não era orientado, mas compôs a “Sonata 1942”. Acredito que ela é uma homenagem a uma peça de Koellreuter chamada “1941”. O Santoro começou a fazer música dodecafônica sem saber exatamente o que era isso. Fazia intuitivamente. Quando mostrou ao Koellreuter, que vinha da Alemanha, este resolveu lhe apresentar Schöenberg, mas não havia nenhum manual sobre isso. Santoro só foi ter acesso a algum manual sobre o serialismo em 1946, o manual de Ernest Krank. O interessante é que muitos pesquisadores ao analisar a música de Santoro denotam juízo de valor e dizem “ah, o serialismo de Santoro não foi ortodoxo”. Com todo o respeito, isso é uma burrice, porque ele fez o serialismo que enxergava. Interessante é que parte da pedagogia do Koellreuter fazia com que você escrevesse uma obra e se desenvolvesse como compositor a partir de si mesmo, isto é, usando a ideia de linguagem composicional como um meio e não como um fim, como um procedimento. O Santoro fez isso e isso está relatado em suas cartas.
BH - Alguma biografia do Santoro lhe ajudou nessa investigação?
PM – Tem o livro do Vasco Mariz, o artigo do Gerard Berarg, o que falta hoje em Santoro é uma biografia séria. Inclusive quem quer escrevê-la é a própria Gisèle (Santoro). Quero contribuir muito com a obra para piano.
BH – Nessa primeira fase do Santoro, de serialismo dodecafônico, já havia elementos de nacionalismo, como podemos identificar em Villa-Lobos, por exemplo?
PM – Esse meu trabalho vem contribuir com isso. Percebi que os pesquisadores anteriores até aqui analisaram a música de Claudio Santoro, afirmando que ele compôs música serial dodecafônica e ficam só nisso. Relacionam a linguagem estética composicional com a ideologia, mas o discurso morre aí. A Teoria Tópica, que advém de Aristóteles, e que estou utilizando na pesquisa, ela possibilita investigar as questões de como o Santoro produzia sentido e significado em sua obra. Mesmo utilizando a linguagem dodecafônica, vê-se muitos elementos nacionalistas na obra de Claudio Santoro.
BH – Que elementos musicais são esses?
PM – Ele pega ritmos da dança, por exemplo. Ele era amazonense, creio que muitos ritmos da região (Amazônica) foram incorporados. Na “Sonata 1942”, por exemplo, temos um típico compositor da primeira metade do Século XX, que denota um discurso musical advindo de dentro da academia, mas, por trás desse discurso singular, próprio, temos elementos comuns de ritmos de dança. Não é algo evidente como em Villa-Lobos, onde é possível identificar um choro. Isso é algo que também está presente na obra de Mozart, por exemplo. Mozart pega várias ideias e as joga em suas sinfonias. A Sinfonia Júpiter, por exemplo, tem várias ideias musicais, representantes do tempo de Mozart. No caso do Santoro, o que é mais interessante, é que você tem uma multiplicidade de influências, só o que resulta no final é o discurso dele, singular, para fazer a música. Você às vezes não consegue identificar claramente uma dança folclórica, uma dança nordestina, mas elas estão ali dentro, contidas. Às vezes, ele altera o tempo, faz mais lento, e isso vira a música de Santoro.
BH – Santoro nasceu em 1919. A Semana de Arte Moderna foi em 1922, ele era uma criança. Apesar de as gravações já estarem de uma certa forma difundidas, como ele teve acesso a essas ideias primordiais da música do século XX?
PM – O que aconteceu com Santoro e o que aconteceu com muitos músicos é que ele teve acesso a certos paradigmas e domínios musicais por causa de pessoas. O mundo da época vivia certo isolamento por causa da guerra. Era difícil escutar certas obras. Stravinsky passou por isso, quando estreou a História do Soldado, na Rússia. Santoro, em particular reflete isso com a maneira com que ele viu o dodecafonismo. Ele não pegou a Semana de Arte Moderna, mas pegou a ideia do modernismo, de um Brasil moderno e avançado. Como? Com a técnica dodecafônica, que era a técnica mais avançada que se conhecia até então. Isso se contrapôs ao grupo de Santos, da Música Nova. Santoro fez parte do (movimento) Música Viva, de Kollreuter.
BH – Quem influenciou musicalmente Santoro? A música popular o influenciou?
PM – Santoro começa a sofrer uma transição em sua obra, inclusive em sua obra para piano, a partir de 1945. É quando ele começa a entrar em raízes nacionalistas. É evidente a influência de Mário de Andrade e suas pesquisas sobre o folclore musical. A partir daí ele vai largando o serialismo. Isso culmina em 1948, com o Congresso de Praga, quando Santoro tem acesso a uma querela de um programa ideológico marxista. Ele volta e decide abandonar a técnica dodecafônica, afirmando que ela é uma música burguesa e a partir daí começa a compor para o povo. Entre 1948 e 1950, Santoro embarca em uma pesquisa folclórica, para descobrir as raízes dos ritmos populares. Seja nas Paulistanas ou nos Prelúdios, encontramos o ritmo da toada, ainda que bem discreto. Temos vários ritmos populares presentes em sua obra, mas muito sutis.
BH – O que o levou a enxergar o mundo com esse viés do socialismo?
PM – Nas cartas (de Santoro), inclusive o professor Sérgio Nogueira chegou a comentar isso, é possível ver esse viés ideológico revolucionário já na primeira fase serialista. Ele perdeu uma bolsa para estudar nos Estados Unidos por ter sido identificado como comunista. Ele sofreu muito embargo a vida toda por causa disso.
BH – No final dos anos 1940, os primeiros anos pós-II Guerra Mundial, ele já estava convicto desse caminho ideológico?
PM – O Santoro é marcado por duas coisas: uma questão ideológica e também o local onde ele se encontra. Ele tem uma característica interessante: é um compositor tão sincero que, onde ele quer que estivesse, ele conseguia absorver as coisas do local. Na Alemanha, quando exilado, foi assim.
BH – Nesse período dos anos 1950, pós-suicídio de Vargas, temos a ascensão de JK, a construção de Brasília, enfim, foram os chamados anos dourados, que durariam até o golpe militar. Onde se insere Claudio Santoro, nesse contexto de um novo Brasil?
PM – Isso se reflete nas canções de amor (escritas em parceria com Vinícius de Moraes). Só que ele vai passar muito tempo fora do país. Ele chegou a estudar com a Nadia Boulanger, em Paris. É o período em que vai fazer muitos cursos, de cinema, de regência, de composição. Ele ganhou vários prêmios no período.
BH – Ele escreveu para cinema, mas pouco se sabe dessas partituras.
PM – Muitas trilhas ficaram como propriedade dos realizadores. Não temos no acervo organizado do Santoro as partituras das trilhas que compôs. Santoro tem mais de 500 obras. Ele compôs para instrumento solo, para instrumento de câmara, duos, trios, quartetos, música para fita magnética, obras eletroacústicas, obras aleatórias. O trabalho dele é bem diverso. No caso da música aleatória, tem a influência de John Cage, embora aqui no Brasil quem tenha mais absorvido essas influências tenha sido o pessoal da música de Santos, a Música Nova, Gilberto Mendes, entre outros. No caso do Santoro, em específico, o que o diferencia é o local. O lugar é muito importante e exerce grande influência. Em Berlim, ele teve algo que não teve no Brasil, que são os quadros, ele passou a se dedicar à pintura. No apartamento em que morou aqui em Brasília, tem vários quadros pintados pelo Santoro. Isso foi uma influência da mãe, que pintava. Santoro dizia que tinha um certo receio de se dedicar à pintura, pois amava tanto essa arte quanto a música. Ele nunca quis virar pintor, porque o fazia lembrar muito da mãe. É notória a influência da pintura sobre as obras eletroacústicas.
BH – O seu mestrado se baseia em quê, exatamente?
PM – Meu mestrado investiga, por meio da Teoria Tópica (ou Teoria dos Topoi), como que o Santoro produz sentido e significado em sua obra, na opera omnia para piano solo. Essa teoria foi trazida à música pelo musicologista americano Leonard Ratner, em 1980. Ela vem da filosofia. Topoi é o plural de topos, que significa lugar-comum. No caso da retórica aristotélica, Aristóteles indica que, quando você tem um discurso e produz sentido para pessoas que às vezes não tem o conhecimento, é preciso lançar mão de recursos, falar de coisas tipo lugar-comum, para que as pessoas possam compreender. Por exemplo, se eu falar de música de forró, a pessoa que me ouve precisa ter noção do que é forró. Mesmo que ela não saiba da história e de suas origens, ela vai saber identificar um forró. Como se dá isso? Isso se dá num nível de significante e quem estuda isso é a semiótica. No caso, é o conjunto de elementos musicais que vão dar o caráter, para dizer que aquilo é um forró. Quando a pessoa reconhece que aquilo é um forró, provém o significado. Muitas vezes ela não tem a menor ideia do que era o significante.
BH – Um ouvinte brasileiro, acostumado com esses elementos, tem isso interiorizado.
PM – Exatamente.
BH – Um russo que nunca ouviu falar de forró certamente vai ter dificuldade de entender essa música, mas pode perceber elementos folclóricos, não?
PM – Talvez.
BH – Da mesma forma que se formos à Rússia e ouvirmos uma balalaica, não teremos a exata dimensão daquela música. Mas podemos desconfiar que aquilo tem uma raiz folclórica.
PM – Podemos inferir. Querendo ou não, esse processo todo só é compreendido em sua totalidade através da cultura, do contexto. É fácil dizer: eu conheço forró. Mas que forró? De que época? Da onde? Uma coisa é o signo, o que é o forró? No caso, vê-se que tem toda a cultura nordestina por trás; representa um tipo de pessoa, de personalidade. Essa relação é complexa. E é dessa forma que analiso a música do Santoro. Para isso, analiso o léxico musical, para compreender como que ele produz sentido no discurso que empreendeu em suas diferentes fases musicais. Para essa investigação tive que ter acesso às cartas que ele escreveu. Comparo o que foi investigado e analisado em sua obra, por meio dessa análise tópica, e depois contraponho com o que é dito em suas cartas.
BH – Esse estudo parece ser bastante musicológico, muito mais do que musical. Ao que consta, você investiga a personalidade do compositor, o que ele deixou registrado em anotações e não se atém apenas à música em si. Para um cara que colocou um peso intelectual tão grande em cima das coisas que fez, como foi o Santoro, parece que é preciso um discurso intelectual, próprio da academia, para poder compreender tudo isso. Para além disso, da produção de uma dissertação de mestrado que esmiúce todo esse sentido, temos o resgate da música, no final das contas; a descoberta da música para piano de Santoro e a vontade inerente de que as pessoas conheçam o grande compositor que ele foi. Faz sentido?
PM – Quando comecei a estudar Santoro, me assustei, pois eu não sabia do estado em que se encontrava o acervo dele. Não sabia que seria tão difícil encontrar suas obras. Demorei dez meses para encontrar a obra completa para piano solo. São 43 obras, a maioria Prelúdios. São mais de seis horas de música para piano. É uma obra muito complexa e com grandes problemas. Outros pesquisadores que se debruçaram sobre a obra de Claudio Santoro nunca falaram das condições em que se encontrava seu acervo. Por exemplo, como é possível prover análise de discurso desse compositor se a obra dele nem ao menos foi revisada? Como é possível ter acuidade, proficiência o suficiente de falar algo sobre uma obra que não está revisada? Diante disso, e do momento em que vivemos, eu quis fazer, para o Brasil e para a família do Santoro, uma nova edição das obras. Edição das obras que estavam em manuscrito, que estavam muito difíceis de ler.
BH – Enfrentou aspectos legais, para reunir essas obras completas para piano?
PM – Essas obras vão ser doadas para a família. O sistema de edição que está sendo feito envolve o estudo do que são edições, não é simplesmente usar um programa de computador, para aplicar correções, como fazem certos pesquisadores. Tem um estudo aplicado para realizar a edição completa, que represente o mais fiel possível o que o compositor queria. Esse material será totalmente doado à família. Um grande problema é que no decorrer da vida, o Santoro publicou suas obras em diversas editoras: na Ricordi, na Itália; na Joubert, na França; na Tonus, na Alemanha. O problema é que em muitas dessas edições perdeu-se muito em termos de revisão e qualidade, quando se observa o que foi editado pela Savart. A Savart era uma editora de fantasia criada pelo Santoro. Hoje a Savart é comandada pelo filho do Claudio, Alessandro Santoro, pianista e cravista, um dos maiores do Brasil, que estudou no Conservatório de Moscou, e que está levando à frente esse difícil trabalho. Diante dessa situação, do estado em que se encontra o acervo, como resultado do meu estudo, estou doando para a família a edição da Sonata 1942 (composta por Claudio Santoro, em São Paulo, em 1942). Essa edição da Sonata 1942 é inédita.
BH – Santoro é pouquíssimo conhecido. Muitos que quiseram gravar encontravam dificuldades. Certamente, isso vai ajudar muito na divulgação de sua obra, não?
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Teatro Nacional em construção |
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Teatro Nacional, em 1960 |
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Teatro Nacional: vista aérea |
PM – Santoro se resume a dar nome ao Teatro Nacional de Brasília, que está fechado, e uma menção de que criou o Departamento de Música da UnB. Fora isso, não se ouve Santoro. É o maior compositor brasileiro para piano. Ele sofreu muito embargo ao longo da vida. Sua obra é algo fora de série. Tem muita política envolvida nisso, pelo fato de ter sido comunista.
BH – Como você contextualiza Santoro em nossos dias?
PM – A substância reside no silêncio. Isso é o que o Brasil precisa. Precisamos entrar em silêncio para poder ter discernimento, integridade, verdade. Não adiante dizer que queremos mudar o Brasil se não conseguimos arrumar o nosso próprio quarto. Para isso, está sendo feito um trabalho que exige muito. Espero que isso ajude na reconstrução do pais. Espero que essa música que seja tocada, faça as pessoas lembrarem quem elas são. Não adiante nada querer dizer falar algo, se sua essência não foi investigada, não foi repensada. Esse é o momento de a gente aprender a ser brasileiro. A brasilidade é uma característica da humanidade. É preciso aprender a escutar e nada melhor do que a música para te fazer lembrar da humanidade. Veja, tive acesso a coisas pessoais que o Santoro escreveu. Santoro não era pessoa comum. A inteligência e percepção de humanidade não eram coisas de outro mundo. Li coisas que indicam que ele estava 80 anos à frente ou mais. Independente do posicionamento político ele foi um homem muito marcante.
Quando Santoro morreu, Pablo Marquine tinha dois anos de idade.