quarta-feira, 10 de junho de 2015

Piano man / Rogério Resende Remix

Só Deus sabe como é difícil dizer precisamente o que é que significa uma peça musical, e dizê-lo de uma maneira definitiva, a que satisfaça a todo mundo.
Aaron Copland, compositor norte-americano

Mesdames et messieurs, votre attention, si’l vous plait. Esta matéria, na verdade, o texto que segue aproveita trechos de entrevista gravada com o técnico-afinador de pianos Rogério Resende, da região de Brasília (DF), e cujo resultado foi publicado na revista Roteiro Brasília (www.roteirobrasilia.com.br) que, como o nome indica, é uma publicação impressa, que (ainda) circula na capital do Brasil. Desde já, um agradecimento aos editores da Roteiro, jornalistas Adriano Lopes e Teresa Fernandes, pela compreensão quanto ao uso de informações e fotos originalmente coletadas para a Roteiro Brasília.

Aqui, informações tomadas em 2014 e em 2015 estão juntas para tentar relatar, de forma resumida, o trabalho desenvolvido pelo técnico-afinador de pianos Rogério Resende. Além de ser um requisitadíssimo profissional da área (afinador de piano é igual atuário, difícil achar um), Rogério vai além, pois sua dedicação envolve o reparo, a restauração, a manufatura e a locação de pianos. Sim, algo como um luthier de pianos, alguém devotado à causa do piano, muito embora ele prefira o termo técnico-afinador de pianos. Afinar, assim como tocar, exige técnica (e muita sensibilidade).

Rogério Resende mantém tudo o que está descrito acima na Casa do Piano, um galpão contíguo a sua residência, nos arredores de Brasília. Lá, em meio a geografia e vegetação do Cerrado, coração do centro-oeste brasileiro, funciona sua oficina, ateliê e depósito (onde tudo é meticulosamente organizado e funcional. Sim, a “pianolândia” existe.

Rogério mostra o mecanismo que facilita o acesso de cadeirantes ao Museu

E se não bastasse o Mágico de (pian)Oz, Rogério Resende criou algo ainda mais incrível: o Museu Itinerante do Piano. Uma carreta carregada de pianos, que roda por aí. Ela transporta uns quinze exemplares, que ajudam a contar a história do instrumento, rei dos instrumentos musicais. O Museu Itinerante do Piano faz com que a gente saiba, por exemplo, quem foi Bartolomeo Cristofori, o italiano inventor do piano, e como a mecânica do instrumento e seus materiais evoluíram ao longo da história.


Cartaz da programação do
 Museu Itinerante do Piano
no Parque da Cidade de Brasília

O Museu Itinerante do Piano vai estar estacionado no Parque
da Cidade Dona Sarah Kubitschek, em Brasília, nos dias 13 e 14 de junho de 2015. Mais precisamente ao lado da praça Eduardo e Mônica, acesso pelo estacionamento 10. A visitação é pública e gratuita. A carreta tem acesso facilitado, inclusive para pessoas com alguma dificuldade de locomoção.

O mais bacana: ela agrega uma programação musical talentosa, pianística, é claro, mas que reserva surpresas, como a apresentação única do grupo português Toy Ensemble, responsável pela parte musical do espetáculo “Tocado, Falado & Riscado”, baseado na obra “Como Nasceram os Anjos”, de Clarice Lispector.

Muito mais: o professor Joel Bello Soares, executando a magnífica “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, de L. M. Gottschalk (falaremos de Gottschalk num momento oportuno); o trio de Renato Vasconcellos. Vejam a programação e compareçam, caso estejam pela região nos dias mencionados. 

Coloquem no motor de busca cada uma das coisas aqui citadas e vocês verão um novo mundo se abrir a cada coisa.

Segue o remix:
O Museu Itinerante do Piano carrega cerca de 15 instrumentos

É insuspeito imaginar o seguinte: o que uma carreta carregando quinze pianos pode significar para a música e ter importância tão grande quanto a arte em si de escutar, ouvir boa música? Se temos em casa uma coleção de discos antigos, vinis e cds que juntos pesam como um (ou dois) Fusca, - e aqui estamos falando de artefatos que reproduzem música em aparelhos apropriados, portanto, pesam -, por que não a existência de uma carreta tipo baú de 19 metros de comprimento, carregada de pianos antigos e raros (dos séculos XIX e XX)?

A carreta não reproduz música, exceto pelos sons de seu potente motor de caminhão a diesel, mas carrega o Museu Itinerante do Piano, algo raro em qualquer parte do mundo. O Museu Itinerante do Piano carrega lindos pianos, de diferentes épocas, finamente conservados, restaurados e afinados.
Rogério ao lado da réplica do Doublepiano


Um piano para dois ou quatro executantes (doublepiano); as pianolas que a gente vê nos desenhos do Pica-Pau; piano com castiçais de bronze (para tocar à luz de velas); um piano com um compartimento para o cachorro (para ficar sempre ao lado do dono), enfim, os mais diversos modelos de pianos, como dito, artesanalmente tratados.

Só um parêntese: basta chegar perto de uma “criatura” assim, para sentir a vibração. Fiquem ao lado de um reluzente e imponente piano de cauda. Percebam que o objeto, o instrumento musical parece pronto para engolir o ouvinte/espectador em sons. Algo como estar dentro de um sino aguardando a badalada. E que badalada. 


O responsável pela “pianolândia”, incluindo a inusitada carreta, como veremos, é o técnico-afinador de pianos Rogério Resende (60 anos, gaúcho de Pelotas, em Brasília desde 1976) e aqui começa a uma viagem, digo, um caso raro de amor à música e, por conseguinte, um caso igualmente raro de um pianista que pulou para dentro do piano.

Na verdade, mais do que isso. Se olharmos sua dedicação e seu o incrível trabalho em torno do piano, saberemos que Rogério é de uma vida vivida para o virtuosismo. Não para autoglorificar o ego, mas, como diz numa letra do Rush: a spirit with a vision is a dream with a mission.

Encurtando a história: Rogério começou a afinar pianos em 1977, depois que viu um afinador chegar para tratar dos pianos que embalavam as noites da boate Tendinha, no Hotel Nacional de Brasília.
Nessa época, Rogério ganhava a vida como tecladista autodidata.

“Em 1977, fui apresentado a um piano acústico. O Hotel Nacional tinha três, todos importados. Quando vi o trabalho dos afinadores e a mecânica interna do piano, fui despertado de forma arrebatadora. Impressionou-me o funcionamento, a mecânica. Dali comecei a observar como era o trabalho de afinação e reparo”.

Fato curioso que costuma contar em entrevistas, diz respeito à troca de um antigo carro Corcel por um piano vertical, um Fritz-Dobbert. Com a autorização da esposa Alda Molina, Rogério Resende efetuou a troca, que se mostrou de grande valia. O Fritz-Dobbert, que não era lá um grande piano, acabou desmontado e remontado várias vezes, peça por peça, tudo guiado pela curiosidade de entender o funcionamento do instrumento.
À direita, o Kawai, bastante cobiçado pelos artistas que visitam Brasília
Em resumo, a noite de Brasília perdeu um tecladista, mas a música ganhou um valioso técnico-afinador de pianos. Na Casa do Piano, Rogério mantém mais de 40 instrumentos em perfeito estado. Alguns estão sempre prontos para a locação, como é o caso de um Kawai, japonês, meia cauda, favorito de artistas como João Donato, André Mehmari e Eudóxia de Barros.

Interessante, porque o Kawai em questão é um piano que utiliza componentes modernos como o plástico, ao invés do que tradicionalmente imaginamos de um piano, todo em madeira, aliás, madeira rara como faia, nativa das zonas temperadas da Europa, Ásia e América do Norte. A questão é a sonoridade e o tamanho, que permite com que o Kawai se ajuste ao palco, além de ser um instrumento apropriado para tocar jazz e MPB.
Rogério Resende e o Essenfelder, provável primeiro piano de cauda de Brasília

“Tenho aqui no Museu, instrumentos raros, que fazem parte da história de Brasília. Tenho aqui o primeiro piano de cauda que chegou à capital. A pesquisa está em curso, mas é provável que este Essenfelder, construído em Curitiba, seja o primeiro. Estava na Igreja Memorial Batista, fundada em 22 de junho de 1960”. A dúvida é porque um outro piano teria chegado na mesma época ao Hotel Nacional de Brasília.

De qualquer modo, o Essenfelder, de 2,75 metros de comprimento, feito principalmente em imbuia, faia, e pinho de riga, mais parecido com um Cadillac, parece impecável e tem aquele som cristalino, uma máquina arrebatadora de corações, sejam duros ou moles.

Outra raridade ligada à capital: um piano vertical Zeitter & Winkelmann, alemão, doado pela professora Neusa França, que por mais de quatro décadas usou o instrumento em suas aulas particulares. Seria o piano no qual a professora Neusa França compôs o Hino de Brasília (“Todo o Brasil vibrou/ E nova luz brilhou/ Quando Brasília fez maior a sua glória! ...”)?

Mecanismo do piano, com martelo de feltro
Conhecer a Casa do Piano é de fato adentrar na “pianolândia”. Lá é possivel conhecer a anatomia do piano, o mecanismo que faz os martelos revestidos de feltro percurtirem nas cordas de aço e cobre. Igualmente é possível conhecer a estufa de pintura, e seus exaustores, que dão aos instrumentos o famoso tom “piano black”, além de algumas das incríveis máquinas desenvolvidas sempre de maneira autoditada pelo técnico-afinador.
Máquina com pneumático que literalmente vira o piano de ponta cabeça

Certa vez, numa turnê por Brasília, a pianista Eudóxia de Barros foi perguntada sobre os pianos de Rogério Resende. Olhando para o Kawai, no qual ela acabara de executar a vigorosa “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, de L. M. Gottschalk, e lindas peças de Osvaldo Lacerda, seu esposo, a grande pianista não titubeou: “É tão bonito e bem conservado que dá vontade de levar para casa”.


Eudóxia de Barros extraindo lindos sons do Kawai da Casa do Piano

Do pianista André Mehmari sobre as qualidades do afinador Rogério Resende:
 
“O temperamento não é uma ciência exata. Vai muito da intuição e do talento do afinador. O Rogério é um dos melhores que eu conheço. Ele consegue ouvir o que o piano quer. A afinação dele é muito orgânica, natural, funciona muito bem. Não adianta pegar o aparelho eletrônico e fazer igual que não sai, não adianta. O Rogério é muito sensível, você vê o amor com que ele trata o piano. O piano que toquei hoje é um piano de aluguel. Parece um piano que está na casa de uma pessoa, parece que nunca saiu, de tão bem cuidado. Aí que você vê o amor que ele tem pela coisa. Eis a diferença”.

André Mehmari, o saxofonista Javier Girotto e o Kawai da Casa do Piano


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