domingo, 28 de junho de 2015

Aldous Huxley, a música e Brasília III (segundo Elizabeth Bishop)

Laura e Aldous Huxley
Cinco anos antes de pegar o bote mágico, em 1958, Aldous Huxley veio ao Brasil, acompanhado da esposa, a violinista, escritora e cineasta italiana Laura Archera Huxley. O Rio de Janeiro, Brasília (ainda em construção) e uma aldeia no Xingu foram os principais pontos de parada do casal.

Essa viagem foi bem documentada, tanto em meio jornalístico quanto em prosa literária. No primeiro caso, coube a Antônio Callado (1917-1997), jornalista e escritor, que acompanhou o grupo nessa viagem, fazer o relato em reportagens publicadas em agosto de 1958 no extinto jornal Correio da Manhã, do qual foi editor-chefe.



A passagem dos Huxley pelo Brasil foi ricamente descrita pela escritora e poetisa norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979), que por mais de vinte anos morou no Brasil. O filme “Flores Raras”, de 2013, dirigido por Bruno Barreto, baseado no livro “Flores Raras e Banalíssimas” (1995), de Carmen Oliveira, mostra a relação da autora norte-americana com a arquiteta brasileira Maria Carlota “Lota” de Macedo Soares.

O relato de Bishop sobre os Huxley deveria ter sido publicado, à época, pela afamada revista norte-americana The New Yorker, mas o texto acabou recusado e somente em 2006 viu a luz do dia, quando foi publicado na The Yale Review, publicação da Yale University (New Haven, Connecticut). The Yale Review é considerado o mais antigo periódico literário norte-americano e por suas páginas passaram nomes como Thomas Mann, Virginia Woolf, Leon Trotsky, Robert Frost, H.G. Wells, entre outros.

“A new capital, Aldous Huxley, and some indians”, o artigo em seu título original, vem somar ao rico inventário de informações sobre o Brasil coletados por Elizabeth Bishop, ao longo de sua estada em nossas terras. Sua obra de maior fôlego sobre o nosso país, “Brazil”, de 1962, foi de certo modo renegado pela autora, que não concordou com as intervenções de seus editores, da revista Time-Life, para que ficasse mais palatável ao público alvo, os norte-americanos.

Elizabeth Bishop: brasilianista de primeira

Com a distância do tempo e olhando para o farto material produzido, não seria exagero apontar Elizabeth Bishop como uma das maiores brasilianistas que este país já viu.

Voltando a Huxley, o artigo de Elizabeth Bishop que menciona a passagem do grande escritor e pensador britânico por Brasília, antes de sua inauguração, em 1960, merece ser lido, por seu estilo claro e conciso e pela riqueza de detalhes, pois flagra não só os primórdios da nova capital e sua aridez de barro vermelho, como também o eufórico momento, que apresentava ao mundo uma democrática nação, exótica e atraente (talvez o contrário do que o Brasil realmente fosse). Eram os anos dourados, a época pós-Getúlio, da bossa-nova, da tenista Maria Esther Bueno, de Pelé e Garrincha e o campeonato mundial de futebol na Suécia.

Aproveitando a passagem dos Huxley pelo Rio de Janeiro e do natural interesse dos estrangeiros pela construção de Brasília, a Divisão de Cultura, do Ministério das Relações Exteriores planejou a viagem, esticando o itinerário até a nova capital e ao rio Xingu, onde a comitiva ficou de conhecer os índios iaualapitis, no Mato Grosso.

No fundo, a intenção do então presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), ao conduzir estrangeiros até Brasília, era colher deles depoimentos e relatos que endossassem a aventura da modernidade que propunha para o país, até então uma imensa lavoura arcaica.
Brasília, barro vermelho
Segundo conta em “A new capital, Aldous Huxley, and some indians” (“Uma nova capital, Aldous Huxley e alguns índios”, publicado em ‘Prosa’ [Companhia das Letras, 2014], tradução de Paulo Henriques Brito), Elizabeth Bishop chegou sozinha a Brasília, um canteiro de obras, no final do período de inverno (agosto de 1958), a fim de juntar-se à comitiva de Huxley, que chegaria depois. Estavam “prontos” o aeroporto, o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada. O resto, barro vermelho disperso, obnubilando o pensamento.

“A primeira coisa que se apresentou aos meus olhos, assim que saí do avião foi uma banca de engraxates com três cadeiras, junto à parede do pequeno prédio do aeroporto. Naquele momento eu não precisava engraxar meus sapatos, algo necessário para todos os passageiros, na hora da partida. É verdade que estávamos nos últimos dias da época seca, mas no final do inverno de 1958 a primeira e última impressão de Brasília consistia em milhas e milhas e milhas de poeira vermelha”.

Congresso Nacional em obras: melancolia e desolação
O cenário, meio parecido com Marte em obras, ganhou de Bishop a seguinte impressão, muito pouco agradável, é bem verdade: “Brasília está localizada em um planalto vazio, estéril e pouco ondulado, 1.200 metros acima do nível do mar. Já me haviam descrito o lugar, mas eu não estava preparada para tanta melancolia e desolação: comparado com quase qualquer outra parte habitável deste país fantasticamente belo, parece sem atrativos e desanimador. Não existem montanhas nem ao menos morros de verdade, nem rios, ao menos visíveis (existe um pequeno rio a algumas milhas, e dois córregos), nenhuma árvore de nenhum tamanho, nenhuma sensação de altura, nem de grandeza, nem de segurança, nem de fertilidade, nem ao menos de paisagem pitoresca; nenhuma das qualidades consideradas capazes de dar charme ou caráter a uma cidade”.

Já naquela época, entretanto, certas coisas já chamavam a atenção, tanto é que dava para ser clarividente: “As duas dádivas que a Mãe Natureza parece ter reservado para Brasília são céu e espaço, e quando alguém imagina esses planaltos sem fim cobertos por edifícios governamentais brancos e modernos, monumentos, arranha-céus, lojas e prédios de apartamentos, como deverão ficar, a única beleza natural restante é o céu”.
Brasília Palace Hotel: estranho e canhestro
Segue uma descrição pormenorizada do Brasília Palace Hotel (“hotel estranho e canhestro”), suas instalações, decoração e a luta inglória de funcionários para retirar a fina poeira vermelha que tudo tingia. Bishop conta ter presenciado um raro momento de aborrecimento na estada do hóspede Aldous Huxley, quando o escritor quase cai de uma rampa, ao descer uma escada na contraluz, rumo ao restaurante. “Ele mostrou nítidos sinais de irritação, ao seu estilo, e comentou que o corrimão vem sendo usado há milhares de anos e que parecia ‘triste abandonar uma invenção tão útil’”.

Tá vendo Niemeyer? As escadas em espirais, lindas e modernas, sem corrimão são um perigo para quem não enxerga bem. Huxley era cego de um dos olhos; para examinar as coisas de perto usava uma lupa com armação de tartaruga e, para longe, um “telescópio em miniatura”.

Aldous Huxley, 1958
Eis o Huxley que testemunhou a proto-história de Brasília, antes do Paranoá virar lago, nas palavras de Elizabeth Bishop: “Huxley é alto, pálido e magro, é claro, mas sem dúvida parece ser ainda mais alto, pálido e magro no Brasil, onde a maioria dos homens, ao menos para os padrões anglo-saxônicos, é baixa e morena... É difícil dizer quanto ele está vendo e, uma vez que costuma falar muito pouco, o que está pensando... Existe um leve desvio no seu olho defeituoso, e essa característica, que eu sempre achei estranha e atraente, no caso de Huxley vem se somar ao seu olhar velado e sonhador”.

Sobraram, ainda, comentários sobre o Palácio da Alvorada, ali perto. Com JK presente na cidade, a comitiva rumou para a residência oficial, onde primeiro foi barrada pelos irritados sentinelas armados de fuzis, que parecem não ter sido avisados sobre os visitantes, e depois pôde circular e examinar as instalações.

Palácio da Alvorada

“Do lado de fora é sem dúvida um dos mais belos edifícios projetados por Oscar Niemeyer. As colunas, em particular, são um triunfo arquitetônico: trata-se, afinal, da invenção de uma nova ordem”. Essas famosas colunas de mármore branco, de fato, foram bastante admiradas, pelo efeito que conferem ao prédio: “Essas colunas fascinaram a todos nós; foram acariciadas, fotografadas e discutidas por algum tempo, e Huxley e outros até desceram das longas varandas para vê-las de baixo”.
Ermida Dom Bosco, ainda sem o lago Paranoá
Naqueles dias, sem o espelho d’água do lago Paranoá, e sem a invasão de casas da classe média ao longo da paisagem, era possível avistar em destaque a capelinha triangular da Ermida Dom Bosco. Laura Huxley, familiarizada com a vida do santo italiano, fundador da Ordem dos Salesianos, queria caminhar até o local, algo impensável em nossos dias, porém a tarde vinha caindo e ela parece ter sido dissuadida a mudar de ideia.
Cidade Livre: como no Far-West americano
Com Marte em construção, o jeito foi espairecer um pouco na vida pulsante da Cidade Livre (atual Núcleo Bandeirante). A comitiva rumou para um drinque no Hotel Santos Dumont. O cenário, segundo Bishop, bem parecido com as cidades de tábuas do “far West” norte-americano.

Recepcionados pela bela condessa Tarnowska, uma polonesa que parecia se divertir com a bagunça da construção de Brasília, o grupo se sentiu como que transportado para um café do Greenwich Village nova-iorquino. Bishop disse ter visto discos de Stravinsky, Villa-Lobos e Bartók sobre a vitrola. Huxley recusou álcool e bebeu suco de laranja, “misteriosamente disponível”.

Vinda de Anápolis, onde explorava um cinema, a condessa tinha aberto outro da Cidade Livre. Ao grupo, ela contou história pitoresca sobre a exibição de “E Deus Criou a Mulher” (“Et Dieu... créa la femme), filme francês de 1956, de Roger Vadim, que apresentou ao mundo a estonteante Brigitte Bardot.
Brigitte Bardot só para os homens
Recorda Bishop: “O público, homens em grande maioria, assistiu em silêncio, pensando sabe-se lá em quê, até que chegou a cena de nudez. Assim que Brigitte Bardot abriu um botão, o filme de repente parou e as luzes se acenderam. O homem da projeção, que já vira a cena, é claro, disse: ‘Por favor, todas as senhoras e senhoritas queiram sair e esperar do lado de fora’. E elas saíram, sem demora, e ficaram do lado de fora, na rua poeirenta, uma pequena multidão. As luzes foram apagadas e os homens assistiram à cena de amor que se seguiu. Mais uma vez interrompeu-se o filme, as luzes foram acesas, e as mulheres foram convidadas a entrar para ver o resto do espetáculo ‘para público misto’”.
Antônio Callado, experiente
Foi na Cidade Livre que o grupo comprou provisões (cigarros, fósforos, e Salva Vidas, aquela espiral inseticida). Antonio Callado, experiente, arrumou anzóis e linhas de pesca. O dia seguinte estava reservado à visita aos iaualapitis, no Mato Grosso.

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