segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Aldous Huxley: Mente humana, perigo para o mundo

Aldous e Laura Huxley
Em agosto de 1958, o escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963), acompanhado da esposa, a artista italiana Laura Huxley, passou alguns dias no Brasil, atendendo a convite do Ministério das Relações Exteriores. Eram os primeiros anos da era JK. O suicídio de Getúlio Vargas estava prestes a completar quatro anos e o país vivia uma tentativa de saltar para a modernidade, em que pese os drásticos números de pobreza e indicadores sociais da época, que não deixavam dúvidas: na primeira década pós II Guerra Mundial, o Brasil era uma típica nação do Terceiro Mundo, ora pendendo para o termo país em desenvolvimento, ora balançando perigosamente para o lado subdesenvolvido.

Jornal O Globo também destacou a presença de Huxley no Rio de Janeiro
Huxley vem ao Brasil, como muitas outras personalidades mundiais vieram e viriam, naquele contexto habilmente posto em prática por Juscelino Kubitscheck, de que éramos uma nação emergente, com muito a ser descoberto, e muito a oferecer ao mundo. A modernização industrial proposta por JK era uma louvável tentativa de mudar nossa cara de nação agrária e arcaica (o custo socioeconômico disso foi imenso, mas isso é outra história). Huxley, como outros, precisavam ver o que estava acontecendo e depois dar o testemunho ao mundo. Um aval de que éramos grandes e o planeta pouco sabia.


A passagem do autor de “Admirável Mundo Novo” pelo Brasil, incluindo a visita que fez a Brasília, nos anos que precederam sua inauguração (em 21 de abril de 1960), já foi comentada neste espaço. O que se oferece agora diz mais a respeito das ideias que tornaram Aldous Huxley um autor famoso.


O extinto jornal “Correio da Manhã”, do Rio de Janeiro, primeiro ponto de parada do casal Huxley, acompanhou a visita com entusiasmo. Contando com um jornalista do porte de Antonio Callado como editor-chefe, o matutino seguiu os passos do autor, pondo o ilustre visitante diversas vezes em destaque de primeira página.

Na edição de 14 de agosto de 1958, o jornal reportou a palestra dada por Aldous Huxley, na então sede do Ministério das Relações Exteriores. Segue a transcrição do texto da reportagem, conforme a diagramação utilizada. O autor não foi creditado. Teria sido o próprio Antonio Callado? Interessante notar o quanto dessas palavras permanecem úteis em nossos dias.

Correio da Manhã
Rio de Janeiro, quinta-feira, 14 de agosto de 1958

Antetítulo: Huxley no Itamarati

Título: Mente humana perigo para o mundo (sic)

Subtítulos (sutiã ou bigode): Profecias de 1932 ameaçam a vida de 1960 - Escravização da humanidade através do condicionamento do cérebro - Brain-washing método terrível - Experiências da Coreia e da China - Um exército de jovens fanáticos - Soma, a droga impossível, sairá dos laboratórios - Conferência de Aldous Huxley foi aula de terror

Texto-legenda da foto que ilustra a reportagem: O almoço que o Itamarati ofereceu ontem a Aldous e Laura Huxley (flagrante acima) foi presidido pelo embaixador Maurício Nabuco: o ministro das Relações Exteriores teve o gesto simpático (e certo) de ceder sua presidência do almoço a Nabuco, brasileiro que verdadeira vivência da cultura inglesa. Na elegante e breve alocução que fez ao homenageado, Nabuco deu por assim dizer a deixa da resposta de Huxley. Falando no imortal livro de Bates (amigo de Darwin e do avô de Aldous Huxley, o cientista T.H. Huxley) sobre a Amazônia, Nabuco lançou Huxley num improviso sobre o que tem visto do Brasil-terra, do Brasil-natureza. Depois de dizer que, como Darwin, ele também se espantara de ver a floresta tropical a quilômetros de uma cidade como o Rio ("this improbable City of Rio", como disse Huxley) o homenageado ecoou também a saudação ao falar no problema do desmatamento e da erosão. Em poucas palavras Aldous Huxley esboçou uma verdadeira Moral das relações do homem com a natureza. A natureza é mãe ou madrasta não em si própria: reage ao tratamento que lhe dá o homem. Tratada a fogo dá-nos a erosão, o deserta. Amanhada com carinho dá-nos até o vergel onde havia areia. E Aldous Huxley teve uma frase que este jornal pode usar como emblema da campanha de reflorestamento que ora leva a cabo. Disse ele: "Se destruirmos a natureza, a natureza nos destruirá".

Texto principal:

Aldous Huxley reage. Sente-se na carne do aprendiz de feiticeiro, do homem que previu o futuro e suas desgraças que agora dá tudo para fazer o público despertar, ajudá-lo a combater o inimigo comum - a mente humana. Sobre esse tema de terror, tendo um livro do próprio Huxley, "Brave New World" (Admirável Mundo Novo) como ponto de partida, mil pessoas tiveram ontem uma aula apavorante, dada com a minúcia de um estudioso e a emoção de um apaixonado.

- Peço desculpas por falar sobre um livro que eu mesmo escrevi, começou Huxley, mas os problemas que focaliza são tão urgentes, estão de tal maneira presentes na vida de cada um de nós e influenciarão a sociedade futura de forma tal que a falta de modéstia justifica-se. Quando em 1932 escrevi "Brave New World", retratando a sociedade superorganizada do futuro pensava que minhas profecias não se realizariam por muitos séculos. Escrevi de coração leve, brincando com a imaginação, traçando um retrato humorístico de um mundo terrível que jamais imaginei ver.

Profecias realizadas

No Brave New World, dois impulsos levavam ao totalitarismo e essas forças se apresentam com potência cada vez maior na época atual. Está presente hoje a superpopulação, que na obra de ficção era controlada por processos que não acredito sejam jamais postos em prática, tais como o estabelecimento de uma seleção genética pré-natal, fazendo com que cada indivíduo nasça em determinada classe cujos números seriam fixos, a formação de bebês em garrafas, os métodos de anticoncepção que denominei "malthusian drills". Em 1932, fixara a população mundial em 1 bilhão e 800 milhões de habitantes. Ela hoje é de 2,8 bilhões, aumenta 45 milhões cada ano. Esse excesso, com as pressões que fatalmente acarreta à vida econômica e às fontes de produção estabelece uma tendência a que o poder do Estado cresça cada vez mais, o individual decrescendo na mesma proporção. Outro caminho das ditaduras que eu previra e hoje se realiza é o da superorganização. O progresso da técnica exige organizações cada vez mais complicadas e o homem de amanhã se defrontará com o problema de como impedir que a organização se transforme em um fim próprio, um Baal estraçalhador de indivíduos.

Terror menos provável

Perigo maior para a humanidade que o excesso de população ou de organização é o desenvolvimento de técnicas que permitem o domínio das massas por uma minoria. Quando George Orwell escreveu, em 1949, seu livro magistral 1984, vivíamos uma época ainda impressionada pelas ditaduras terroristas de Hitler, Mussolini e Stalin. Brave NewWorld foi escrito sem as influências dos métodos de terror e creio que o totalitarismo usará para sua vitória as técnicas que imaginei, de preferência as técnicas violentas descritas por Orwell.

Cérebro, o inimigo

A escravização da humanidade por ser feita através da manipulação cerebral do homem, sem que este se aperceba e fazendo-o amar a escravidão. São conhecidos os métodos clássicos da propaganda elevados à perfeição por Hitler e Stalin, para fins comerciais pelos norte-americanos. O que me impressiona são as técnicas mais recentes, surgidas nos últimos anos. O cientista soviético Pavlov dedicou anos e anos ao estudo do condicionamento de reflexos. Suas experiências cientificamente impecáveis estão tendo uma sistemática aplicação política, transformando-se em incrível perigo para as democracias. É o brainwashing. O condicionamento de crianças, realmente importante para as ditaduras obrigadas a firmar seu poder no assentimento das gerações novas, não tem o mesmo estarrecedor sensacionalismo do condicionamento de adultos. Para uma ditadura é de imensa valia uma vítima que, tendo seu consciente inteiramente esmigalhado e seu modo de pensar invertido, transforme-se em propagandista ferrenho do regime que o destruiu.

Brain-washing

O brain-washing consiste no seguinte: Pavlov descobriu, fazendo experiências com cães, que qualquer cérebro submetido à pressão constante durante um lapso de tempo suficiente acaba desintegrando-se, caindo no estado nervoso chamado "nervous breakdown". Atingido esse ponto de decomposição da personalidade, é extremamente fácil imprimir-se ao indivíduo comportamentos e crenças novas, completamente diferentes dos que anteriormente tinha. Verificou-se ainda que as sugestões impressas no cérebro nesse estado são praticamente definitivas. Durante a guerra mundial, chegou-se à conclusão que a decomposição da personalidade dos homens submetidos a rudes condições de combate se processava em um perigo variável de 15 a 50 dias. Só os que eram pessoalmente desequilibrados ficavam imunes à loucura coletiva.

China e Coréia: experiências

Durante a guerra da Coreia os comunistas aplicaram o método de brain-washing em larga escala com os prisioneiros americanos. Conseguiram resultados espantosos. É com os próprios comunistas chineses, no entanto, que as experiências têm sido desenvolvidas mais profundamente e com sucessos estrondosos. Os jovens membros do partido destinados a doutrinar as populações distantes da China Vermelha são reunidos em uma espécie de campo de concentração. Durante seis meses são submetidos à tremenda pressão física e mental. O cérebro não resiste, atinge a beira da loucura, o estado ideal para que as doutrinas partidárias lhes sejam inculcadas. Com o processo, 20 por cento ficam loucos mas os restantes 80 por cento transformam-se no exército de jovens fanáticos que é a maior ameaça que as democracias já tiveram de enfrentar.

Aprender dormindo

Os políticos do Brave New World davam a maior importância a um sistema hipnótico de ensino que martelava slogans enquanto "estudantes" dormiam. Aprender dormindo não é mais imaginação e nos Estados Unidos existe uma florescente indústria de vitrolas e discos especiais que repetem sugestões enquanto a pessoa dorme. Segundo um fabricante, 8% dos compradores devolvem a aparelhagem, 30% escreve cartas entusiásticas e 62% não devolve nem aplaude mas, ao fim de certo tempo, parece beneficiar-se com o sistema. É fácil adivinhar o poder político dessas máquinas se ao invés de repetir frases inocentes como "Trate de emagrecer", "Não seja tímido" ou "Ganhe mais dinheiro", repetissem os slogans de uma ditadura. O sistema de transmitir sinais luminosos ou sons rápidos demais para serem percebidos pelo consciente humano, apesar de já haver sido ensaiado como veículo de propaganda ainda está em estágio técnico inferior. A técnica, no entanto, tende fatalmente a progredir e breve veremos esses métodos empregados em larga escala.

Estimulantes e calmantes

A ciência moderna está realizando outra de minhas profecias - a "soma", a droga milagrosa que imaginei, mistura de estimulante, tranquilizador e produtor de visões. O número de novos calmantes e estimulantes produzidos atualmente pela farmacologia é espantoso. Diferem dos produtos clássicos em uma questão fundamental: surtem efeito sem causar desgaste no organismo. Os soviéticos já anunciaram que estão fazendo pesquisas no sentido de encontrar um estimulante que, sem causar mal a quem o toma, aumente de muitas vezes a capacidade de trabalho físico e de concentração cerebral.

Um mundo consciente

O que podemos fazer contra essa série de perigos novos que surgem na mente humana? Os problemas ainda não estão em fase aguda mas, com a rapidez atual do progresso científico, talvez a situação seja diferente daqui a 10 ou 20 anos. Devemos despertar no público a consciência do perigo para que, através da legislação, educação ou ação religiosa possamos enfrentá-lo. É necessário que não sejamos apanhados de surpresa por esse desenvolvimento da técnica, evitando os sofrimentos que no passado atingiram as gerações que, por exemplo, não souberam ver a aproximação da Revolução Industrial. Se eu puder ser de alguma utilidade para despertar essa consciência pública, estarei fartamente recompensado.

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