sábado, 22 de abril de 2017

Poesia no 57° aniversário de Brasília

Mas sobretudo você é culpada, Brasília. No entanto, eu te desculpo. 
Não tens culpa de ser tão bela e patética e pungente e doida.

Clarice Lispector 

Eterna alvorada em Brasília
Nos 57 anos de Brasília, comemorados em 21 de abril de 2017, uma homenagem. Muitos escreveram sobre Brasília. Desde quando esta terra ainda era colônia de Portugal e já se imaginava uma capital no coração do Brasil. Muitos ilustres e anônimos, poetas, domadores da palavra e de coração ressentido.

Elizabeth Bishop, André Malraux, Sophia de Mello Breyner, Manuel Bandeira, João Cabral, Drummond, Cassiano Nunes, Paulo Bertran, Clarice Lispector, uma lista formidável de autores destilando em verso, prosa e sentimento de barro vermelho a essência da cidade inventada por Lúcio Costa. Em síntese, é do espírito brasileiro que estão falando.

Raimundo Nonato Silva
Ao jornalista, padre casado, advogado e homem de Letras Raimundo Nonato Silva (1918-2014), maranhense de Barra do Corda, devemos a primeira iniciativa de compilar a poética brasiliense quando a urbe ainda era canteiro de obras.




Editor da revista “Brasília”, publicada pela Novacap, como espécie de prestação de contas do passo-a-passo que fazia brotar a cidade no meio do Cerrado, Nonato Silva (também poeta e professor), muitos anos depois, em 2012, reuniu os primórdios de tudo na obra “Poetas da Construção de Brasília – Origem da Literatura Brasiliense”.


Neste aparecem as poesias publicadas na revista “Brasília”, bem como “poesias não publicadas na revista Brasília”, mas elaboradas naqueles primeiros anos, a saber, entre o final dos anos 1950 e início da década de 1960.

Dentre odes e loas de todo tipo, muitas de carregado verniz ufanista e de valor mais histórico que poético, reproduz-se aqui uma gema (parte das "poesias não publicadas") que bem traduz o sentimento de quem muda para a capital do Brasil.

Hoje, óbvio, as distâncias são vencidas pela tecnologia e estar conectado é maneira de se sentir menos só. Mas naquele início, sair de sua cidade-natal ou adotiva e aportar em Brasília não era para qualquer um. Para estes, uma alvorada que se abria no peito; para aqueles, um trauma de difícil superação.

Mudar não é só locomover o corpo para lugar distante. Mudar é pôr em movimento o coração e a mente. Igual pensar e filosofar. Dói. Não é para qualquer um.


MUDANÇA

José Maria Cerqueira

Um dia, acordarás, com a família
dessorado de praia e de cais,
encravando no peito de Goiás
o coração marmóreo de Brasília.

Um dia, acordarás, sem a família
com medo dos castelos muito iguais,
em meio às solicitudes funcionais
com o mesmo destino da mobília.

Desiodado, uma noite, já sem nome,
e apocalipsado pela fome
de querência, de anímicas raízes,
irrigarás marinhas pelo asfalto
para que o panorama do planalto
assimile teu sal e teus matizes.

Rio, 31.1.60

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