Mas sobretudo você é culpada, Brasília. No entanto, eu te desculpo.
Não tens culpa de ser tão bela e patética e pungente e doida.
Clarice Lispector
Eterna alvorada em Brasília |
Elizabeth Bishop, André Malraux, Sophia de Mello Breyner, Manuel Bandeira, João Cabral, Drummond, Cassiano Nunes, Paulo Bertran, Clarice Lispector, uma lista formidável de autores destilando em verso, prosa e sentimento de barro vermelho a essência da cidade inventada por Lúcio Costa. Em síntese, é do espírito brasileiro que estão falando.
Raimundo Nonato Silva |
Editor da revista “Brasília”, publicada pela Novacap, como espécie de prestação de contas do passo-a-passo que fazia brotar a cidade no meio do Cerrado, Nonato Silva (também poeta e professor), muitos anos depois, em 2012, reuniu os primórdios de tudo na obra “Poetas da Construção de Brasília – Origem da Literatura Brasiliense”.
Neste aparecem as poesias publicadas na revista “Brasília”, bem como “poesias não publicadas na revista Brasília”, mas elaboradas naqueles primeiros anos, a saber, entre o final dos anos 1950 e início da década de 1960.
Dentre odes e loas de todo tipo, muitas de carregado verniz ufanista e de valor mais histórico que poético, reproduz-se aqui uma gema (parte das "poesias não publicadas") que bem traduz o sentimento de quem muda para a capital do Brasil.
Hoje, óbvio, as distâncias são vencidas pela tecnologia e estar conectado é maneira de se sentir menos só. Mas naquele início, sair de sua cidade-natal ou adotiva e aportar em Brasília não era para qualquer um. Para estes, uma alvorada que se abria no peito; para aqueles, um trauma de difícil superação.
Mudar não é só locomover o corpo para lugar distante. Mudar é pôr em movimento o coração e a mente. Igual pensar e filosofar. Dói. Não é para qualquer um.
MUDANÇA
José Maria Cerqueira
Um dia, acordarás, com a família
dessorado de praia e de cais,
encravando no peito de Goiás
o coração marmóreo de Brasília.
Um dia, acordarás, sem a família
com medo dos castelos muito iguais,
em meio às solicitudes funcionais
com o mesmo destino da mobília.
Desiodado, uma noite, já sem nome,
e apocalipsado pela fome
de querência, de anímicas raízes,
irrigarás marinhas pelo asfalto
para que o panorama do planalto
assimile teu sal e teus matizes.
Rio, 31.1.60
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