sábado, 9 de novembro de 2019

Sisters of Mercy, catarse em Brasília

Oh, the Sisters of Mercy
They are not departed or gone
They were waiting for me
When I thought that I just can't go on
And they brought me their comfort
And later they brought me their song
O, I hope you run into them
You who've been traveling so long.

Sisters of Mercy (Leonard Cohen)





Lux Interior (The Cramps): catarse
Rock’n’roll é catarse. Isso não é novidade. A história e seus inúmeros exemplos relacionados confirmam o axioma. Bill Halley, Elvis, Little Richard, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, pioneiros em levar as plateias à loucura foram grandes influenciadores que deixaram marcas. Os Beatles, os Stones, Led Zeppelin, The Who, Pink Floyd, The Cramps, Ramones, cada um ao seu modo, também exerceram essa influência e magnetismo sobre milhões mundo afora.

Everybody's rocking
Todos tocados por esse tal de rock’n’roll.

Observem as várias definições de catarse e as coisas parecem se encaixar. Na etimologia da palavra, é a purificação, a purgação, o alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral. Para os gregos da Antiguidade o que era? Expulsão daquilo que consideravam estranho à essência do ser. Em outras palavras, o que corrompia a pessoa.

Édipo e Antígona, por Louis Duveau
Pelo viés da estética teatral, a purificação do espírito do espectador. É disso que tratam as tragédias. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes foram mestres na manipulação desses sentimentos. A coisa só funcionava se o espectador invariavelmente fosse submetido à purificação das emoções e paixões. Eis a fórmula: terror (phobos) + piedade (eleos) = catarse (katharsis).

Na medicina, catarse é a evacuação do intestino. Ok. Na psicanálise, aquele procedimento de tratar neuroses, trazendo à consciência do paciente coisas inculcadas no inconsciente. Na psicologia, a liberação de emoções ou tensões reprimidas. Para encurtar, aquele efeito libertador dos medos e da raiva.

De onde saiu tudo isso, sabichão? (Dicionário) Houaiss, velho de guerra, sempre nos ensina alguma coisa. Como isso se conecta com o rock’n’roll? Bem, isso não está nos dicionários, mas não é difícil aduzir que todo aquele educado a base da história do rock, todo aquele que já ouviu muito som, que curtiu a discografia dos artistas acima relacionados, que, de alguma forma, teve coração e mente tocados pelo espírito da coisa, esse sabe a resposta.

Mas o canto é menor que vida de qualquer pessoa, dizia Belchior. Assim, saber a resposta nada significa. Por ora, deixemos de lado a contradição e vamos focar no rock com sentido catártico, de expiação e celebração, ou o contrário, depende do ponto de vista. E aí chegamos à banda britânica The Sisters of Mercy, em rara digressão pelo país, no final desse 2019.



Sisters passaram por Brasília. Aqui não vinham fazia 29 anos (!). A banda liderada pelo enigmático cantor Andrew Eldritch tocou no Toinha Brasil Show, casa especializada em rock na capital federal. Olha, quem testemunhou, viu que não foi mero exercício de nostalgia, levando em conta que o auge de sucessos do grupo se deu na segunda metade dos anos 1980.

The Sisters of Mercy @ Toinha Brasil Show, Brasília, 07/11/2019
Mesmo sem provocar exatamente o terror e a piedade (mercy), os Sisters levaram à catarse os quer aceitaram se entregar ao ritual de música, luz e escuridão. O Toinha virou teatro de sombras. Do palco emanava o comando para que os esqueletos sacudissem os invólucros que muitos teimam chamar de corpos.

The Secret Society @ Toinha Brasil Show, Brasília, 07/11/2019
Antes, porém, convêm destacar que a noite foi de rodada dupla. A banda The Secret Society, direto de Curitiba, abriu os trabalhos, entregando cargas de mistério e imaginação debaixo de um impactante rock pesado como há muito não se ouvia.


O trio composto pelo baixista e cantor Guto Diaz, o baterista Orlando Custódio e o guitarrista Fabiano Cavassin apresentaram repertório autoral, músicas contidas no álbum Rites of Fire. Não poderia ter sido escolha melhor como banda de abertura.


Basta dizer que o som desses caras ora lembra Rush, ora Pink Floyd, mas não qualquer Rush ou imitação de PF. Digamos que parecia um Rush turbinado ou um Floyd cheio de testosterona. Melodias prog metal muito bem construídas e executadas por um entrosado power trio com um quê de virtuosismo e forte pegada pós-punk.


Ao vivo, a Secret Society sabe tomar a plateia pelo estômago. Como? Pelo estômago. A paulada sonora é daquelas que bate na caixa torácica, irradiando energia por todo o corpo de quem estiver na frente. Esse truque é infalível. Impossível ficar indiferente. Tipo da banda que prende a atenção o tempo todo. Diante do turbilhão sonoro, muitos preferiram ficar estáticos. Os vulneráveis e destemidos, ou seja, os que não estavam nem aí, esses aproveitaram bem, pois caíram na dança. Ficaram extáticos, hahaha.


Como dizia Márcia de Windsor, nota 10 para a Secret Society.

Sisters em som, luz e sombra
Minutos depois, Andrew Eldritch, os guitarristas Dylan Smith e Ben Christo, e Ravey Davey, operador do drum machine Doktor Avalanche, enfim, The Sisters of Mercy ocupam o palco e tem início o tal ritual de música, luz e escuridão.



Eis uma banda singular. Como sabido, Sisters não tem disco de inéditas desde Vision Thing, álbum lançado em 1990. De lá pra cá, fazem jus à honestidade contida nas palavras que estampam seu website: uma banda de rock’n’roll e uma banda pop; uma máquina de groove industrial; [autoproclamados] deuses do amor intelectual; volta-e-meia fazem discos; de vez em quando, turnês.








Ok. The Sisters of Mercy tocam o repertório antigo com a força do som atual. Do material mais antigo, Temple of Love e Alice aparecem com roupa nova. Marian, No Time To Cry, e First, Last & Always, do disco homônimo de 1985, ganham update tonificante. Do disco Vision Thing tocam quase todas: Doctor Jeep é apresentada em simbiose com Detonation Boulevard. Ribbons, More, I Was Wrong, Vision Thing, e Something Fast fazem ver a ênfase nesse que é o último disco de estúdio. O mesmo ocorre com Dominion/Mother Russia, Flood II, Lucretia My Reflection e This Corrosion, que encerra os trabalhos.





Christo e Smith, guitar heroes
Na linha de frente, os guitarristas Ben Christo e Dylan Smith ladeiam Eldritch e fornecem apoio e protagonismo, nos fazendo lembrar que a banda é a unidade, a personalidade do som. Seja em duelo de solos, seja em vocais, a dupla Christo e Smith surge como guitar heroes, contraponto à persona de Eldritch.

Andrew Eldritch





Eldritch e Smith
Mestre de cerimônias, devido à falta de cabelos, este ora encarna uma personagem de teatro kabuki (canto, dança e habilidade), ora dança nas luzes cruzadas (uma grande sacada cênica), ora ginga as pernas como um Elvis do futuro. Ou seja: Eldritch encarna a história do rock’n’roll, pois nele vemos ainda resquícios de David Bowie e da estética monocromática e temática de Lou Reed e o Velvet Underground.


Alguma violência em vista? Sim, na estética e na poesia, pois não há como fugir desse espectro. Mas aqui tudo é sublimação catártica. Eldritch canta sempre em voz gutural: “I hear the roar of a big machine/ two worlds and in between/ love lost, fire at will/ dum-dum bullets and shoot to kill, I hear/ dive, bombers and/ empire down/ empire down” (Lucretia My Reflection).

Ben Christo e Andrew Eldritch
Ou ainda: “Pink noise, white noise/ and a violet whining sound/ it burns inside this car/ no cops, no signs, no left, no right/ no stops, no turning round/ well, you can run but you can't ride/ you won't get far/ - on Detonation Boulevard/ - bang bang” (Detonation Boulevard)


Rock é cultura, brothers & sisters. E (ainda) liberta corações e mentes.






The Secret Society

















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