domingo, 22 de janeiro de 2017

O primeiro piano de Brasília

Bentley Upright Pianoforte

Resumo da ópera: Um Bentley inglês, modelo vertical, construído em 1946, é provavelmente o primeiro piano que chegou a Brasília, a capital do Brasil. Em 1957, sua proprietária, a professora de música Maria de Lourdes Cruvinel Brandão, desembarcava de Goiânia, trazendo família e sonhos, e a pedra fundamental da música que nunca deixou de ser apreciada em Brasília.


Volta-se a recomendar a leitura da revista Roteiro Brasília. Para os familiarizados, publicação mensal, que circula em Brasília (também, com um nome assim), tendo se tornado cada vez mais uma raridade, em se tratando de mídia impressa periódica na capital do país.

Claro, não é de hoje que a Roteiro Brasília também existe no mundo virtual, mas se você já teve a oportunidade de folhear suas páginas, reais ou virtuais, certamente deve ter percebido que dela flui um charme brasiliense. Fala das coisas de Brasília, afinal.

Com o mote Comida, Diversão e Arte emprestado de uma canção dos Titãs e fielmente mantido desde os primórdios, quando era um encarte do extinto jornal Gazeta Mercantil, a revista vai se equilibrando bravamente nesses tempos sombrios, graças à persistência de seus editores, os jornalistas Adriano e Tereza Lopes, e de toda uma equipe de articulistas e fazedores de revistas que mantém mês a mês a qualidade gráfica e o alto nível de textos e assuntos abordados.

Desta vez, Mr. Menezes volta a contribuir com a publicação, com matéria referente ao primeiro piano que parece ter chegado em Brasília, na segunda metade dos anos 1950.

Um breve introito. Era o período de construção da nova capital do Brasil (inaugurada em 21 de abril de 1960), tempo dos Anos JK, anos dourados em que o país arrumou um jeito de dar um salto rumo à modernidade, a maioridade de uma jovem República de pouco mais de 70 anos.

Foi também quando o Brasil deixou um pouco de lado o "complexo de vira-latas", segundo o escritor Nelson Rodrigues.

JK (à esquerda), na Cidade Livre, 1956 (Fotos: Arquivo Público do DF)
Em menos de quatro anos, o presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), no poder entre os anos de 1956 a 1961, fez jus ao apelido de Presidente Bossa Nova e promoveu a mudança da capital, do Rio de Janeiro para o Planalto Central.





O resto é história, como é história a história dos que vieram ajudar a erguer a cidade; que aceitaram o desafio de mudar para o coração do Brasil e viver a rotina de uma estrutura urbana pouco a pouco sendo moldada diante de uma misteriosa região brasileira denominada Cerrado, mil metros acima do nível do mar, com seu horizonte aberto, céu infinito, matas esparsas, recantos de água e barro vermelho, não exatamente na ordem aqui apresentada.


Os que chegaram para construir a cidade testemunharam o início de tudo. Cada qual, a seu modo, ajudou a erguer os esteios que suportam a cidade. Do nada, das entranhas da terra vermelha, apareceram ruas, avenidas, prédios, ocupações e denominações urbanas que acabaram consagradas no projeto do Plano Piloto de Brasília, de autoria do arquiteto e urbanista Lúcio Costa.

Professora Maria de Lourdes Cruvinel Brandão (Nov/2016)
Com a construção vieram pessoas como a educadora Maria de Lourdes Cruvinel Brandão, considerada a primeira professora de música de Brasília. Ela viu o alvorecer das instituições de ensino da cidade, que surgiam diante da demanda das famílias que aportavam na nova capital e precisavam de escolas para seus filhos.

Com a professora Maria de Lourdes, diretamente de Goiânia, a capital de Goiás, veio para Brasília o primeiro piano que se tem notícia neste quadrante, um Bentley, inglês, tipo armário (ou apartamento), feito de imbuia, cepo de faia. Não exatamente para ficar decorando um canto da sala, mas como instrumento de educação e fruição musical; afinal, é para isso que servem os pianos.

“Estávamos aqui em 1957, na inauguração da escola inicialmente chamada G1 (Grupo Um), que depois passou a se chamar Julia Kubitscheck. Funcionava na atual Candangolândia, era uma escola de madeira”, recorda.





Na revista Brasília, histórica publicação da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil), edição número 10, de outubro de 1957, está lá o registro, a foto da professora Maria de Lourdes, assistindo ao desenlace da fita inaugural da primeira escola de Brasília, pelo então ministro da Educação Clóvis Salgado. Os não menos históricos Israel Pinheiro e Ernesto Silva, à época, respectivamente, presidente e diretor da Novacap, aparecem no cumprimento do dever de materializar os prédios e equipamentos públicos que aos poucos viraram referência na história da cidade.

Rogério Resende e o robusto Bentley 
O especialista em pianos Rogério Resende, famoso pela Casa do Piano, cuida do instrumento da professora Maria de Lourdes, e lembra que esses Bentleys são formosos por se tratarem de bons projetos, isto é, pianos finamente construídos. Não à toa, os ingleses são os inventores dos pianos verticais. "Esses instrumentos são pequenos, mas com muita robustez sonora".


Martelos verdes. Onde já se viu isso?
E se não bastasse a robustez, por acaso o transeunte já viu piano com martelos verdes? O baixinho Bentley tem os mais estranhos martelos já vistos, segundo Rogério Resende. Uma coisa assim em nada difere dos tradicionais feitos de feltro, em nada melhora ou piora o som do instrumento. A explicação, afirma Resende, pode estar no fato de que no pós-II Guerra, os "Aliados", como parte dos acordos de reconstrução mundial, enviaram quantidade enorme de quinquilharias para todos os continentes. Os Bentleys, assim como bicicletas e máquinas diversas, também se disseminaram pelo planeta, e é provável que uma leva encaminhada ao Brasil ganhou as cores verdes. Em contraste com a chapa metálica, até que fica um estranho verde e amarelo no interior do piano.


O curioso a respeito do piano é que ele tanto nos faz pensar sobre a vida que se espraiava nos anos pré-inauguração de Brasília, como também sobre os talentos que dele extraíram música. Em que circunstâncias a música foi tocada e ouvida através desse instrumento? Por onde andou o piano da professora Maria de Lourdes?

Vinicius e Tom, no dolce far niente, Brasília, 1959
E mais: sabemos que em 1959, o maestro e compositor Antonio Carlos Jobim e o poeta Vinicius de Moraes, estiveram em Brasília, pagos pela Novacap, para compor peça musical que deveria ser executada na inauguração de Brasília (não foi, isso é outra história).


A “Sinfonia da Alvorada” foi basicamente composta no período em que os dois foram hóspedes do Palácio do Catetinho, a construção de madeira que serviu de Quartel General do presidente JK, durante a construção da capital.

Tom, Vinicius e o mistério: que fim levou este piano?
O paradeiro do piano usado por Tom e Vinícius permanece um mistério. No texto que escreveu e se encontra no encarte do disco da Sinfonia da Alvorada, Vinícius dá o testemunho:

“Falei em piano. É fato. João Milton Prates [piloto da FAB e amigo de JK] providenciou-nos um piano, que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano [caseiro do Catetinho] e três candangos, nós o subimos a braço para o Catetinho, com mais medo de que seus degraus cedessem ao peso do que de um enfarte do miocárdio. Naturalmente, pois o Catetinho é hoje um monumento histórico, e a estátua do fundador de Brasília parecia apreensiva, sobre seu pedestal no terreiro em frente, com os resultados de nossa operação”.

Certa ocasião, um historiador afirmou que terminada a aventura da dupla que compôs “Garota de Ipanema” o instrumento teria voltado para Goiânia e teria sido levado para a sede da Associação Atlética Banco do Brasil (AABB), na entrada da capital goiana. Basta uma consulta à instituição, para ter como resposta a afirmação negativa de que a entidade jamais teve um piano em seus domínios.


Diante dos fatos, Mr. Menezes afirma peremptoriamente: o piano da professora Maria de Lourdes, parece ser mesmo o primeiro piano de Brasília, o Santo Graal dos pianos da cidade, mas não parece ser o mesmo utilizado por Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes na estada no Catetinho.

Com a devida permissão, o Blog do Hektor reproduz entrevista com a professora Maria de Lourdes, originalmente feita para a revista Roteiro Brasília.

Professora Maria de Lourdes: história da educação em Brasília

Blog do Hektor – A senhora é mesmo a primeira professora de piano de Brasília?

Maria de Lourdes – Cheguei aqui de mudança, em 15 de outubro de 1957. Meu marido, advogado que trabalhou com o doutor [Bernardo] Sayão, já estava aqui desde 1956. Foi ele quem trouxe os primeiros Jeeps para Brasília. Fui a primeira professora de música de Brasília. A Neusa França, professora de piano, chegou em 1960.

BH – A senhora estava na inauguração da primeira escola erguida na capital?

ML – A primeira escola foi inaugurada pelo ministro da Educação Clovis Salgado, o Dr. Ernesto Silva, e o Dr. Israel Pinheiro. Fomos cinco os professores que inauguraram a escola. Eu lecionava música, o que eu fazia desde Goiânia. Nessa época meu piano veio junto.

BH – Este piano foi utilizado pelo Tom Jobim, quando esteve em Brasília com o Vinicius de Moraes?

ML – Não foi o Tom Jobim. Foi o Bené Nunes.

Bené Nunes, o bonitão do piano
BH – Quando e onde que o Bené Nunes tocou nesse instrumento?

ML – Deve ter sido entre outubro de 1957 a 1959. Nós mudamos para as casas da Fundação [da Casa Popular], em 1959. Eles iam buscar o piano lá na Candangolândia. Nessa época o Juscelino ficava no Catetinho.


Palácio do Catetinho, projeto de Oscar Niemeyer
BH – O seu piano foi levado para o Catetinho?

ML – Não sei para onde ele era levado. Eles pegavam o piano e levavam para as festas deles e depois me devolviam. Isso aconteceu várias vezes.

BH – A senhora conheceu o Bené Nunes?

ML – Não o conheci porque eles ficavam por lá, né? O Juscelino com a turma dele.

BH – Este é, de fato, o primeiro piano que chegou em Brasília?

ML – Eu considero, porque aqui não tinha nada.

BH – Nem nos hotéis havia piano?

ML – Os hotéis ainda estavam em construção. Nessa época estavam construindo o Palácio da Alvorada e o Brasília Palace Hotel.

BH – A senhora esteve naquela época no Brasília Palace Hotel?

ML – Sim. A gente ia lá, por causa de alguma reunião.

BH – Viu algum piano por lá?

ML – Não lembro de ter visto.

BH – A senhora já ouviu falar que em Planaltina [cidade a 38 quilômetros de Brasília] tem um piano no museu da cidade que parece pra lá de antigo?

ML – Não sei se ele chegou antes do meu, mas não podemos dizer que foi o primeiro de Brasília, pois Planaltina já estava aqui antes da inauguração da capital.

2 comentários:

  1. Muito legal essa história. Brasília tem que guardar essas memórias. Parabéns pela descoberta.

    ResponderExcluir
  2. Se pensarmos que Brasília ainda é uma menina, então ela ganhou o primeiro piano. Mas também deve ter ganho o primeiro sax, o primeiro violão (esse, em verdade, era do Dilermando Reis), o primeiro violino... Aparentemente o primeiro piano foi encontrado.

    ResponderExcluir