Tivéssemos apreço por nossa riqueza cultural,
o nome de Luiz Eça não seria uma incógnita para tantos brasileiros
Luiz Mainzi da Cunha Eça (1936-1992) |
Na cabeça do redator...
Se no canto temos a figura do intérprete – e na música popular brasileira Elis Regina é a maioral –, na música instrumental, excetuando os eruditos, também temos figura similar, o intérprete que ultrapassa as fronteiras da mera execução correta e, acrescentando algo próprio, arremessa o ouvinte aos píncaros da experiência aural.
Não há definição que sirva, mas o intérprete que não canta, que toca, sobretudo se for pianista, de alguma maneira está sempre recriando a música alheia ou a própria, valendo-se do improviso como método de abordagem ou ponto de partida. Claro, o improvisador corre riscos, porque viver é correr riscos.
Tamba Trio: Helcio Milito, Luiz Eça e Bebeto Castilho |
E não apenas. O que expressou ao piano, seja em gravações ou nas célebres noitadas a fio nas mais bacanas casas de shows que o Rio de Janeiro já teve, é de grande valor cultural e musicalmente sensacional. Aponte um deslize na discografia do Tamba Trio. Nos discos solos. Não há. O que há é uma musicalidade exuberante, de arranjos antológicos. Sem falar no toque do piano, transformando qualquer composição em exercício de estilo, impondo uma assinatura autoral.
Ajudado pela família Guinle e por JK, Luizinho Eça passou temporada de estudos na Europa, mas desistiu de seguir uma carreira de concertista erudito, preferindo a liberdade da música popular e do jazz, perfeitos campos de prova para o improviso e os arranjos.
Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal são os nomes por trás de um clássico da Bossa Nova e da Música Popular Brasileira, o LP “Barquinho” (1961), da monumental Maysa (1936-1977).
Fiquei muito emocionado quando ouvi o Luizinho regendo uma “orquestra” de violinos na gravação antológica de O Barquinho. Ele era quase um garoto, e seus pais, já bem velhos, assistiam encantados à gravação. Naquele momento senti que tinha descoberto um gênio. E, desde o momento em que o convidei para trabalhar comigo, nos tornamos amigos e parceiros. Fizemos algumas músicas maravilhosas como Maysa e Melancolia, entre outras.
Ronaldo Bôscoli (1928-1994), em depoimento a Luiz Calos Maciel e Ângela Chaves,
no livro “Eles e Eu – Memórias de Ronaldo Bôscoli” (Ed. Nova Fronteira)
Maysa Figueira Monjardim (1936-1977) |
Lembrando: a doce heavy metal Maysa, nessa época bandeou para o lado da Bossa Nova, em grande tentativa de chacoalhar a carreira. Chega dos maravilhosos bolerões, a sofreguidão (sofrência é o cacete!), a bebedeira do coração partido. Nada melhor que a tranquilidade zen da Bossa Nova, para acalmar o vulcão em erupção.
Como dito, o trio – Bôscoli no comando – acha que domou Maysa (mentira, ninguém nunca conseguiu) no estúdio e mandou sequência matadora nos dois lados do LP. “O Barquinho” (Menescal/Bôscoli) abre os trabalhos, enquanto as demais não ficam atrás. O terrível Bôscoli – que aparecia como letrista em sete das 12 faixas – tentava comandar a carreira de Maysa e introduziu Luiz Eça como diretor musical.
Na ótima biografia “A Bossa do Lobo” (Ed. Leya), de Denilson Monteiro, consta série de episódios envolvendo a agitada turnê de Maysa na Argentina, em 1961, da qual tomaram parte os meninos da Nova Onda: Luiz Eça (23 anos); Luiz Carlos Vinhas (21), piano; Roberto Menescal (23), guitarra; Bebeto Castilho (21), baixo; Helcio Milito (30), bateria; e Ronaldo Bôscoli (32), produtor e empresário.
Por quê dois pianistas (Eça e Vinhas)? Segundo Bôscoli, Luizinho Eça fazia os arranjos, tocava as lentas, enquanto Vinhas mandava as agitadas. Assim foi.
E-D: Helcio, Luiz Eça, Maysa, Menescal, Bebeto e Vinhas |
Eça (primeiro à esquerda) e a turma que segurou Maysa na Argentina |
Só para ter uma ideia, puto da vida, Menescal queria ir embora (e a turnê nem tinha chegado ao Uruguai), não acreditando na falta de profissionalismo da cantora e seu empresário e de estar envolvido nesse tipo de situação. Quanto a Luiz Eça, certamente foi levado na conversa de Bôscoli e teria protagonizado a lamentável cena de entrar vestido de mulher em um show de ninguém menos que Nat King Cole, que cumpria datas em Buenos Aires.
Lenda ou não, Luiz Eça (ou Luiz Carlos Vinhas) e Bôscoli resolveram ir ao show do grande Nat vestidos nas roupas da cantora, enquanto Maysa se enfiou em um suit (smoking, como gostam os brasileiros), tudo porque na boate havia a promoção “damas grátis”.
Ronaldo Bôscoli e Maysa desembarcam no Galeão (1961) |
Nara Leão, em 1964 |
Edição japonesa do CD "Luiz Eça e Cordas" (1966) |
Na universidade...
Vista aérea da Universidade de Brasília |
Por alguma circunstância, que por ora não importa, Mr. Menezes viu-se levado aos domínios da Universidade de Brasília (UnB). No auditório do Departamento de Música daquela instituição, uma movimentação em torno do recital de mestrado do jovem pianista Diogo Monzo.
Sua tese “Improvisação Musical e Um Improvisador: A Música Sem Fronteiras de Luiz Eça” não deixava dúvidas: Luiz Eça estava sendo recriado 24 anos depois de ter se despedido do “planeta dos malucos”, como lembrou o amigo de fé, irmão camarada, o figuraça Luís Carlos Miéle (1938-2015), brother inseparável de Ronaldo Bôscoli.
Monzo, Antunes e Di Steffano recriando o Tamba Trio |
Diogo Monzo e o espírito de Luiz Eça |
Tamba Trio, com Rubens Ohana na bateria |
O pessoal do blog Búzios Bossa Blog, por exemplo, lembra que em 1961 o Tamba Trio (Eça ao piano; Bebeto Castilho, no baixo; e Helcio Milito, bateria) “explodiu” no Beco das Garrafas tocando hard-bossa (ou samba-jazz). Aliás, parabéns ao pessoal desse blog pela “biografia incompleta” de Luizinho Eça. Mr. Menezes recomenda a leitura.
Mas olha o repertório do recital de Diogo Monzo e convidados: “Mestre Bimba”, “Alegria de Viver”, “Melancolia”, “Imagem”, “Weekend”, “Reflexos” e “The Dolphin”. Ou seja, o suprassumo da obra de Luiz Eça, faixas gravadas com o Tamba Trio e da carreira solo, incluindo a mencionada “The Dolphin” (originalmente “Daulphine”, no disco “Luiz Eça, Piano e Cordas” [1970]), gravada por Bill Evans, Stan Getz e Michel Legrand.
O recital na UnB foi especial por diversos motivos. O principal, ninguém sai por aí tocando Luiz Eça e fica por isso mesmo. A maneira natural com que Diogo Monzo encara o teclado, sem nenhum temor do que dali vai sair, faz a felicidade do ouvinte. E recriar Luiz Eça não é para qualquer um. Você pode até não entender os processos musicais, mas é impossível ficar indiferente ao talento desse rapaz.
Fernanda Quinderé (centro): convidada especial |
Simone e Luiz Eça (1974) |
Mesmo sem nunca ter estudado diretamente com Luiz Eça, o mestrando Diogo Monzo é praticamente um aluno. Ele diz que a liberdade de tocar é a característica mais relevante que encontrou no som do pianista do Tamba Trio. Exatamente a liberdade de um artista com grande domínio técnico que sempre atuou no limite da sensibilidade.
Sua dissertação não parece ser a primeira sobre Luiz Eça. A pianista norte-americana Sheila Zagury defendeu tese sobre o criador Daulphine/The Dolphin, em 1996: “A harmonia criativa: uma descrição dos procedimentos didáticos de Luiz Eça”.
O Blog do Hektor conversou com Diogo Monzo antes da apresentação no auditório do Departamento de Música da UnB.
Diogo Monzo |
Diogo Monzo – Eu conheci o Luizinho quando fui estudar no Rio. O conheci através do Roberto Alves, que foi aluno dele. Quando cheguei lá o Luiz Eça já havia falecido.
BH – Nunca tinha escutado?
DM – Conheci lá no Rio.
BH – Algum disco específico?
DM – O Roberto Alves tocou umas músicas dele no piano. Daí fui pesquisar mais e achei discos do Tamba Trio.
BH – Acho que da primeira formação do Tamba Trio só o Bebeto Castilho ainda está por aí, não é mesmo?
DM – Sim, o baixista Bebeto, que depois passou para a flauta. Lembra da Copa de 98? A Nike usou como tema uma música do Tamba Trio.
BH – “Mas Que Nada”, do Jorge Ben?
DM – Isso.
BH – Essa versão do Tamba é realmente irresistível. Ao vivo é que era um arraso. Mas o que você curtiu no piano do Luiz Eça?
DM – O jeito livre de tocar.
BH – Você sacou elementos de improvisação?
DM – Sim. Considero meu piano parecido com o do Luizinho Eça, é fruto de muito escutá-lo. É muito livre, solto.
BH – Luiz Eça parece que não se prendeu a um único gênero. Fez trilha sonora, muitos arranjos, um monte de coisas.
DM – Não se prendeu, daí o nome da pesquisa: “A Música Sem Fronteiras...”. Ele não teve essa coisa de se preocupar: isso aqui é popular, isso é erudito.
BH – Temos uma boa tradição de pianistas neste país. Desculpe a insistência: por que o Luiz Eça, dentre tantos?
DM – Primeiro a identificação com o jeito dele de tocar. Não sei a pessoa, não o conheci.
BH – Ok, e na sua pesquisa, que aspectos você se ateve?
DM – Me ative a quatro solos improvisados dele. Transcrevi esses solos e na pesquisa coloco como esses processos eram usados pelo Luizinho Eça.
BH – Você fala de peças conhecidas dele, tipo “The Dolphin”?
DM – Acho que essa foi a primeira que ouvi, depois fui buscar as coisas dos primeiros álbuns do Tamba Trio.
BH – O Tamba Trio era meio Bossa Nova.
DM – Eles tocavam o repertório da Bossa Nova, mas não eram Bossa Nova. Se você ouvir vai perceber as diferenças.
BH – Era uma linha mais jazzy?
DM – O jazz americano e elementos da música erudita. O Eça teve formação erudita.
BH – Gosto dos dois volumes Luiz Eça Piano e Cordas.
DM – Ele teve 29 trabalhos gravados.
BH – Discos do Tamba Trio, você até acha um ou outro, mas mesmo na internet é complicado encontrar coisas do Luiz Eça.
DM – É verdade. Já procurei várias coisas que ainda não consegui encontrar. Um dia eu estava numa cidade, não lembro qual agora, e vi uma mulher vendendo uns discos usados. No meio deles estava lá: “Luiz Eça, Piano e Cordas”. Há anos que procurava. Quem tem não se desfaz. Paguei R$ 1,50 por ele!
BH – Que sorte, hein. Os discos, igual aos livros, vêm até você.
DM – É. Voltando à pesquisa, peguei os solos improvisados e os coloquei na partitura, para mostrar o que o Luiz Eça estava fazendo.
BH – Nesses processos que você menciona, não parece complicado separar o músico e o artista Luiz Eça? Digo, ele tinha uma baita personalidade, que influenciou bastante a própria carreira, não é?
DM – Sim.
BH – Luiz Eça é o nome por trás do início da carreira de diversos artistas, não é mesmo?
O primeiro Milton (1967), com o Tamba 4 |
DM – Sim. Ele lançou o primeiro disco do Milton Nascimento, acompanhou Edu Lobo, Maysa, Gozaguinha, grandes nomes da nossa música.
BH – Como você vê o trabalho de orquestração que ele fazia?
DM – Acho que ele era um excelente orquestrador. O primeiro disco do Milton, “Travessia”, com acompanhamento do Tamba Trio, é considerado um divisor de águas na música popular brasileira.
BH – Interessante, pois nem o Tamba Trio e nem o Luiz Eça solo fizeram parte do movimento “Clube da Esquina”.
DM – Bem, naquela época ninguém conhecia o Milton.
BH – Teu disco “Meu Samba Parece Com Quê?” tem elementos de Luiz Eça?
DM – Esse foi o meu segundo CD. Tem seis músicas minhas, uma do Tom Jobim, uma do Ernesto Nazareth e uma do Nabor Nunes. É um trabalho que tem o foco na improvisação de maneira livre. Esse foi o meu divisor de águas.
BH – Muito bem gravado, por sinal.
DM – Foi gravado no (estúdio) Beco da Coruja, com músicos daqui, menos o Rodrigo, que é de São Paulo. Basicamente, são minhas composições, os temas são pequenos, pois o disco é voltado para a improvisação.
BH – Improvisação tem um timimg? Ela precisa acontecer naquele tempo certo?
DM – Na minha opinião, improviso muito longo é difícil para quem está ouvindo, a pessoa se perde. Tem gente que gosta, mas para mim, já deu.
Diogo Monzo? Não. Luiz Eça |
BH – Você nunca pega uma canção ou toca uma peça apenas do ponto de vista formal?
DM – Não, raramente. Sempre deixo acontecer alguma coisa. Para mim, a improvisação tem a ver com o erro. A partir do momento que você erra, você procurar consertar. É quando surgem coisas que você não estava esperando.
BH – Em solo ou em grupo?
DM – Em grupo a gente segue muitas vezes um “mapa”, não necessariamente aquilo que está escrito, mas é uma direção, um norte. No CD, por exemplo, você tem as composições pequenas, as músicas têm um número de compassos, a gente tem essa referência como se fosse um mapa.
BH – Falar em CD, você tem algum trabalho inédito?
DM – Acabei de gravar um CD com a obra do Luiz Eça.
BH – Com qual formação?
DM – Com um trio. Esse trabalho está pronto, mas agora não posso dar muitos detalhes. Aguarde o lançamento.
BH – “The Dolphin” está presente?
DM – Sim.
BH – Essa composição é a mais conhecida dele, não?
DM – Sim, a peça que fez ele ficar conhecido no mundo inteiro. Bill Evans gravou. O interessante é que ele a registrou nos dois lados do disco [“From Left To Right” (1971)]. Stan Getz também gravou e até batizou um disco com esse nome [“The Dolphin” (1981)]. E Michel Legrand, que em 2002 gravou um disco em homenagem ao Eça. Toots Thielemans também gravou.
BH – Você acha que o Luiz Eça está por trás do que hoje se conhece como Brazilian Jazz?
DM – Não, ele não era Brazilian Jazz. O Luizinho era único, pois só ele fazia aquelas coisas. Você ouve o piano e você sabe que é o Luiz Eça. Pode ouvir e comparar, ele tinha o jeito dele de tocar.
BH – Considera que ele abriu uma escola, não exatamente no sentido formal?
DM – Acho que ele poderia ter aberto uma escola, mas não tinha essa pretensão. Na música popular brasileira, o Luiz Eça abriu muitas coisas, foi pioneiro em muitas coisas.
BH – Tipo o quê?
DM – A questão harmônica, que não havia antes. Isso veio do Luizinho, veio de Ravel, Debussy. O Luiz Eça trouxe essas coisas para a nossa música.
BH – Mais até que Tom Jobim?
DM – Sim. No livro da Fernanda Quinderé, esposa do Eça, ela conta que “Insensatez”, do Tom, ao contrário do que muitos pensam, não foi baseada em prelúdio de Chopin, na verdade foi baseada em Luizinho Eça. O Tom admirava muito o Luizinho. Ele foi professor de muita gente: Ivan Lins, Edu Lobo, Guinga, por aí.
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