terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Luiz Eça na universidade - Fernanda Quinderé

Luiz Eça, no Chicko's Bar, anos 70
O pianista, arranjador e mestre de harmonia musical Luiz Eça (1936-1992), integrante do extinto grupo Tamba Trio, foi celebrado na Universidade de Brasília (UnB), quando da apresentação do recital de mestrado de Diogo Monzo, jovem músico radicado na capital do Brasil, e que faz do improviso ao piano sua voz mais eloquente.


Ao recital, compareceu como convidada a jornalista, escritora, atriz, apresentadora de televisão, poeta e produtora carioca, radicada em Fortaleza (CE), Fernanda Quinderé, quarta e última esposa de Luiz Eça.



Suas lembranças da vivência com o músico foram descritas no livro “Bodas da Solidão – Um Olhar Azul Para Luiz Eça” (2007) (Edições Livro Técnico).

Diogo Monzo (piano) e Fernanda Quinderé, na UnB
O dia seguinte ao recital foi reservado para Fernanda Quinderé, que é presidente da Academia Fortalezense de Letras, falar sobre a vida e obra do grande pianista do Tamba Trio. Importante dizer que Diogo Monzo fez o prelúdio à palestra “O legado musical de Luiz Eça”, executando ao piano “Daulphine” (“The Dolphin”), talvez a peça mais conhecida de Luizinho Eça.

Assunto de tamanha importância merecia plateia mais numerosa.

Fernanda Quinderé, a mulher azul
Para Luiz Eça, Fernanda dedicou em seu livro “Mulher Azul” o poema póstumo “O Homem e a Noite”, o qual leu em voz alta, no auditório do Departamento de Música da UnB:


O homem bebeu a noite
Entrelaçou-se nas tramas da poeira cósmica
Anestesiando seus sonhos
Suas perplexidades
Se fez só, se fez éter
Se fez lânguido
Com seus braços em cruz
Mãos crispadas no seio da mulher ausente
Deslumbrou a madrugada.
A brisa, a beijar-lhe o rosto,
Sobre a sujeira dos telhados
Inflados de tristeza
Se fez raio, se fez úmido, se fez lágrima
Ventos bafejaram-lhe o rosto com a esperança
E em cada poro de seu corpo
Óvulos fecundaram-lhe em vida e sons
Transformando em perdão o passado estampado na cara
O homem se fez sóbrio
Se fez lúcido
Se fez luz
Em busca de ser estrela
Nas sinfonias do tempo

Miles Davis, por Francis Wolff
Um corte no tempo. Imaginem a cena: Nova York, 197?. Luiz Eça, na porta do teatro, aguarda a entrada de Miles Davis. Chega o Deus do trompete. Luiz tenta o diálogo.

- Hello, man! Do you remember me? I’m Luiz Eça from Brazil.

- I don’t remember. I don’t remember.

Luiz ficou arrasado.

- Puxa, essa cara pede a minha música e me esnoba de primeira.

Assim mesmo, acomodou-se o mais próximo possível do palco. Ao final do show, a grande surpresa. Miles sentou-se no proscênio, encarando-o nos olhos e tocou “The Dolphin”.

Foi uma das maiores emoções de sua vida. Que se saiba foi a primeira e única vez que Miles tocou essa música.

Esse relato é da escritora Fernanda Quinderé, do jeito que aparece no livro “Bodas da Solidão – Um Olhar Azul Para Luiz Eça”, até o momento, a mais completa “biografia” sobre Luizinho Eça, um dos mais admirados músicos brasileiros de todos os tempos.

Miles, o mala
Só para não perder o fio da meada sobre como Luiz Eça foi parar na porta do teatro, é preciso saber que algum tempo antes, em viagem aos EUA, Luizinho havia sido interpelado por Miles, que o procurou pedindo a partitura de “The Dolphin”, à época já um pedaço de grande música, gravada por Bill Evans (1929-1980), no álbum “From Left To Right” (1971).

“Tá na mão”, entregou Eça, que ganhou de presente do mitológico trompetista uma carona até o hotel numa limusine, não por acaso com uma louraça a bordo.

Luiz Eça entre os gigantes da MPB (junho/1967)
Causo, dentre inúmeros que Luiz Eça viveu no rico cenário da música popular brasileira, dos anos 1950 até sua partida do “mundo dos malucos”, em 1992, quando o coração veio cobrar as contas de muitas noitadas que resultaram em abusos de substâncias e a saúde fragilizada até o fim. Cardíaco, diabético e fumante, não merecia partir tão cedo, aos 56 anos.

Obituário no Jornal do Brasil, maio de 1992
Muito mais do que um registro biográfico, entretanto, o livro de 220 páginas de Fernanda Quinderé pesa uma tonelada, não exatamente por relatos pesados, mas por conter o registro íntimo de quem viveu um casamento de 12 anos – ela foi a quarta mulher dele; ele, o quarto marido dela – e uma história de amor para toda uma vida.

Fernanda Quinderé (1953)
Garoto e garota cheios de sonhos, eles se conheceram em meados dos anos 1950, no Rio de Janeiro. Eça já era um pianista de respeito, mas ainda não havia trilhado o caminho da Bossa Nova e o nome Tamba Trio sequer existia. O namoro não foi longo e cada um partiu para o seu mundo (ela se estabeleceu em Fortaleza, ele continuou no Rio), casaram, descasaram, tiveram filhos com os respectivos cônjuges, até que se reencontraram, novamente no Rio de Janeiro, em 1977, quando, desimpedidos de matrimônios, reacenderam o fogo olímpico da paixão e foram viver felizes para sempre até quando deu certo.

Fernanda e Luiz
“Casamos. Outubro de 1979. Os vinte e seis anos à espera do reencontro nos fez viver outros amores e fazer muitos filhos que unimos em nossa casa”.

"Se o Luiz fosse vivo, completaríamos hoje 63 anos de amizade, e 37 anos de casados, incluindo pequenas separações. Eu tinha mais de 50 bilhetes do Luiz, amorosos ou não. Então, escrevi o livro", afirmou ao público.


Luiz e Fernanda
Quinderé lança luzes sobre o homem de sua vida. Por mais que tente explicar e nos forneça robusto relato de confidências ficam sempre as reticências a respeito da personalidade de Luiz Eça, homem de enorme talento, artista sensível, mas que por diversos motivos não conseguiu administrar a própria vida, coisa que só os hipócritas acham que conseguem.

Gigantes nos anos 50: Eça (esquerda), com Arthur Moreira Lima (ao piano),
mestres Lucia Branco e Jacques Klein, e Nelson Freire, de calças curtas
Ela fala de muitas oportunidades perdidas, desde o episódio no Conservatório de Viena, anos 50, quando, bolsista, desdenhou do academicismo: blasfemou contra Mozart (“obra matemática e fácil de tocar”), o que lhe rendeu suspensão de três dias; e ao fazer dever de classe – escrever arranjo para piano e quarteto de cordas – apresentou variação sobre “Duas Contas”, do violonista Garoto. Levou nota zero “pela audácia de profanar a academia com música popular”.

Katia e Marielle Labèque
Por estranhos motivos, Eça deixou de atender a convites de trabalho e de entregar partituras, para que outros pudessem levar sua música adiante. As belas irmãs Katia e Marielle Labèque (o Duo Labèque) e Michel Legrand (em noite memorável, no Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo) tocaram com Luizinho e ficaram esperando o envio da partitura de The Dolphin.


Contracapa de Homenagem a Luiz Eça (2002)

Michel Legrand
Anos depois da morte de Luizinho, Fernanda Quinderé entregou as partituras a Michel Legrand, que em 2002 pôde levar a diante o projeto de um álbum dedicado ao gênio brasileiro.

E quem foi à UnB ouviu em primeira mão trecho de "Olhar de Princesa", composição inédita de Luiz Eça, que, segundo Quinderé, pela primeira vez recebeu tratamento harmônico, das mãos de Diogo Monzo. Em estudo, a elaboração de uma parceria póstuma, com o jovem pianista brasiliense recebendo os créditos de coautoria da composição.

Olhar azul, ouvindo The Dolphin (Daulphine)
Fernanda Quinderé gentilmente concedeu a seguinte entrevista ao Blog do Hektor:

Blog do Hektor – Se estivesse vivo, Luiz estaria na ativa, tocando firme e forte?

Fernanda Quinderé  – Não sei.

BH – Ele falou alguma vez em estar de saco cheio, largar tudo?

FQ - Nunca. Pelo contrário, ficava aflito quando não tocava.

BH – Quando você o conheceu?

FQ – Conheci quando tinha 15 anos e ele 17. No Rio de Janeiro através de um amigo em comum. Sou carioca, minha família é cearense. Meu pai era funcionário público da Receita Federal. Ele foi transferido para o Rio, e depois transferido de volta para a antiga Alfândega, em Fortaleza. Esse amigo um dia me falou: “Ah, você vai para o Rio, vou te apresentar um amigo que toca piano”. Eu levei uma carta para o Luiz. Foi aí que nós nos conhecemos, isso foi em 1953. Em 1954, voltei ao Rio e começamos a namorar.

BH – Nessa época ele já era um músico conhecido?

Luiz Eça, Ed Lincoln e Paulo Nei: power trio
FQ – Sim, um fenômeno, ele era um gênio musical. Nessa época, ele já tocava na noite. Gravou o primeiro disco em 1955, com o trio formado pelo Ed Lincoln, e o Paulo Nei, que era o guitarrista. Nesse tempo, o Ed Lincoln tocava contrabaixo.

BH – Esse trio tinha nome?

FQ – Não tinha um nome. Eles substituíram o Johnny Alf, que tocava no Plaza.

BH – Essa é uma fase pré-Bossa Nova, tempo em que o samba-canção predominava.

FQ – É. Fiz até uma conferência sobre a origem do samba no Brasil, que este ano completa 100 anos, e meu enfoque foi em cima do samba-canção.


BH – Origem do samba, você fala em “Pelo Telephone”? Donga? Essa rapaziada?

Tia Ciata
FQ – Esse foi o primeiro samba gravado. Mas ele já existia com o candomblé, as baianas, Tia Ciata, a mais famosa de todas. Estamos falando de 1914.

BH – “E se o samba nasceu foi na Bahia...”.

FQ – Tem essa referência, mas é porque elas eram baianas, foram essas três tias que trouxeram o candomblé para o Rio de Janeiro, moravam na Praça Onze. Só a Tia Ciata tinha 15 filhos. O interessante é que elas eram muito perseguidas pela polícia. O samba não era permitido, era coisa de malandro, coisa de morro, tocar violão era proibido.

BH – Brasil república.

FQ – Brasil república. Wenceslau Braz era o presidente, de 1914 a 1918. O presidente durante a Primeira Guerra Mundial. Entretanto, ele adoeceu, com uma ferida na perna. Não tinha nada que curasse. Quando médico nenhum conseguiu a cura, uma pessoa que tinha conhecimento da Tia Ciata a convidou a visitar o Wenceslau Braz. Tia Ciata tinha o conhecimento das benzinhas, as curas através das rezas. Pois bem. Tia Ciata curou a perna do presidente.

BH – Caramba.

FQ – E ela não cobrou nada. Como forma de agradecimento, ele deu um emprego para o marido dela. Os políticos, então, passaram a respeitar a Tia Ciata, a polícia parou de perseguir o samba. Os políticos começaram a frequentar as rodas e permitir essa manifestação.

BH – Esse período precede as escolas de samba, não é?

FQ – Não havia isso. Eram os entrudos, o carnaval de rua, confete e serpentina.

BH – Essa é a origem do samba-canção?

FQ – Essa origem vai bater lá atrás. A história do samba-canção remete à polka, ao tango brasileiro, à valsa brasileira. É a herança da música que veio do Império, a tradição europeia da canção.

BH – Voltando ao Luiz, em meados dos anos 1950 ele já tocava jazz?

FQ – Não, tocava música americana, que era o que ele ouvia, e música clássica.

BH – Se me permite, nessa época parece que o jazz já tinha passado por várias metamorfoses e, de alguma maneira, o som já tinha contagiado muitos músicos. Foi o caso do Luiz Eça?

FQ – Sim, naquele tempo já tínhamos o samba sincopado.

Bené Nunes (1920-1997)
BH – Bené Nunes tocava assim?

FQ – Não. Ele tocava muito Ary Barroso.

BH – Com Ary Barroso o samba foi a Hollywood.

FQ – O samba exaltação, Aquarela do Brasil.

BH – Então, em 1954, vários sambas já tinham estourado nas rádios. Marlene, Emilinha Borba.

FQ – Muito em cima do carnaval. O Luiz Eça, nessa época, tocava música clássica, pois ele era estudante e um apaixonado pela música. Como ele precisava trabalhar, uma vez que os pais dele eram muito velhos, já precisando de ajuda, foi preciso uma autorização do juiz para que ele pudesse tocar na noite. Ele tinha 17 anos.

BH – Ele era menor de idade e precisava trabalhar. Em que lugar exatamente ele batia ponto?

FQ – Na boate Plaza, Copacabana.



BH – Bottle’s, Beco das Garrafas, só veio depois?

FQ – Beco das Garrafas já é em 1960. Ele estreou nesse ano com o Tamba Trio, no Beco das Garrafas.

BH – Nessa época, já tinha saído o (LP) “Chega de Saudade”, a Bossa Nova era o som do Rio de Janeiro.


FQ – Em 1956 tivemos a peça “Orfeu da Conceição”, Vinicius e Tom Jobim, cenografia do Niemeyer, cartazes do Sclier.

BH – O Luiz Eça parece ter bem vivido a música nesse Brasil pós-Getúlio, JK, construção de Brasília, Maria Ester Bueno, Copa de 1958, Cinema Novo, bicampeonato no Chile, anos dourados que vão até o Golpe de 1964. De que maneira esse estado de coisas contagiou o Luiz Eça?

FQ – Ele foi totalmente contagiado por esse Brasil. Nessa época ele ganhou a bolsa para estudar em Viena.

BH – Essa temporada na Áustria parece ter sido decisiva na carreira do Luiz Eça. Já vi por aí que no conservatório ele teria sido reprovado por improvisar sobre Beethoven.

FQ – Não foi assim. Ele foi repreendido porque foram discutir a obra de Mozart e ele disse que tocar Mozart era algo muito matemático, não era lá essas coisas. Aí mandaram ele fazer um arranjo de cordas, para um quarteto de cordas, e ele fez um arranjo da música “Duas Contas”, do Garoto: “Teus olhos / São duas contas, pequeninas...”. O Garoto, violonista, era amigo dele. Daí disseram que ele estava reprovado, porque estava profanando a academia. Foi convidado a se retirar da academia.

BH – Esse era o espírito do Luiz.

Igor Stravinsky (1882-1971)
FQ – Sim. Nesse período em que estudava em Viena, ele esteve com o (Igor) Stravinsky. Stravinsky estava lançando “Le Sacre du Printemps / A Sagração da Primavera”, obra que dividiu o século XX, na música clássica. Luiz viu o anúncio e não tinha dinheiro para ir. Mesmo assim foi para a entrada do teatro e disse ao porteiro que tinha uma carta para entregar nas mãos do grande compositor russo. O porteiro obviamente não deixou e disse que ele podia entregar a carta que a faria chegar ao maestro. Em um momento de distração, o Luiz entrou no meio de várias pessoas e teve acesso ao teatro. No corredor, ele encontrou um senhor, que o indagou: “O que você quer?”. O Luiz: “Eu queria entregar uma carta ao maestro Stravinsky”. O homem disse: “Então, vem comigo”. Entraram no camarim e o homem: “Cadê a carta? Eu sou o Stravinsky”.

BH – Muito bom.

FQ – Eles conversaram em francês, o maestro autografou o programa, e vendo que o Luiz era estudante, disse: “Você não vai assistir da plateia, mas daqui do palco”. E deu um jeito de o Luiz ficar atrás do naipe de cordas. O Luiz Eça viu “Le Sacre du Printemps / A Sagração da Primavera”, com o próprio Stravinsky regendo, de um lugar bem privilegiado.

BH – A bolsa de estudos teria sido dada pelo Juscelino Kubitschek?

Martha Argerich
FQ – Sim. Ele foi convidado pelo Pedro Pereira, mecenas, para tocar em um jantar no qual o Juscelino estaria presente. Luiz tocou o “Peixe Vivo”, como se fosse um grande concerto. O presidente parou para ouvir e depois falou: “Amanhã, às 9 horas, esteja lá no Ministério da Educação, com o (ministro) Clovis Salgado, que vai lhe atender. Ele vai lhe dar uma bolsa, para você estudar em Viena”. A família Guinle também ajudou a complementar a bolsa. Ele teve aulas com (a pianista) Martha Argerich, com Hans Graf, e com Friedrich Gulda. Quando saiu do conservatório, ele foi morar com a Martha Argerich. Ele foi convidado a estudar em Paris, com a Nadia Boulanger, mas o Luiz não encarou. Na época, disse que estava de saco de cheio de viver fora do país, estava com saudade de casa. Chegou, encontrou o João Gilberto, se apaixonou, formou o Tamba Trio e o resto é história.

Bill Evans (1929-1980)
BH – Em que circunstância ocorreu o encontro do Luiz Eça com o Bill Evans?

FQ – Não sei. Só sei que eles se amavam. Houve essa série de fotos, do Bill cortando as mãos do Luiz, as orelhas. Essas fotos são muito engraçadas.

BH – Quem tirou essas fotos?

FQ – Não sei, um desses paparazzi da noite. 

BH – Isso foi em 1979?

FQ – Sim. 1978 ou 1979, Chiko’s Bar.

BH – Bill Evans faleceu em setembro de 1980.

FQ – Sim, logo depois. Morreu de consequências trágicas. Ele, Chet Baker, esse pessoal entrou de cara nas drogas.


BH – O Luiz passou por esse aperto?

FQ – Sim.

BH – O quê?

FQ – Cocaína.

BH – Na noite, no Rio?

FQ – Sim. Ele tinha a saúde comprometida. Era diabético e fumante. Três carteiras de cigarro por dia.

BH - Bebia?

FQ – Não, não era de beber. Bebia muito leite, cerveja. Mas não era aquele bebedor de uísque.

BH – Uma coisa puxa a outra, né? Ele chegou a ficar doente por causa disso?

FQ – Claro. Quem que não adoece por causa de droga? Aliás, esse foi um dos motivos de nossa separação. Ele falava grego, eu falava português, como é que a gente ia se entender?

BH – Alguma vez ele mencionou que esse negócio era tipo um combustível para a inspiração?

FQ – Não para se inspirar, mas para viver. Ele me pediu muito para ajudá-lo a largar. E ele conseguiu largar algumas vezes, mas a noite chamava. Por isso, eu tirei ele da noite e o coloquei dentro de casa, para ele ensinar.

BH – Acho que ele ganhou uma sobrevida.

FQ – Sim.

BH – E parou?

FQ – Parou, mas tem sempre alguém que se aproxima...

BH – Gostava de maconha?

FQ – Não, maconha era besteira.

BH – Luiz foi próximo do João Gilberto?

FQ – João Gilberto é um gênio.

BH – Você o conhece?

FQ – Não, nunca quis conhecer pessoalmente. Ele era muito amigo do Luiz. 

BH – Eles gravaram?

FQ – Não. O pessoal dizia: vamos na casa do João Gilberto. E eu nunca quis. Sou tão apaixonada (por ele), que posso me decepcionar. Melhor não conhecer. Foi um período muito bom, muito rico da nossa vida.

BH – Entendo. Ele estava com você quando compôs The Dolphin?

FQ – Não, foi antes de mim. Quer dizer, a gente era amigo, mas isso foi nos anos 1970. Foi no “Luiz Eça e Cordas 2”. O nome era Daulphine. Virou The Dolphin, nos Estados Unidos.

BH – Ele chegou a receber direitos pelas gravações que foram feitas desse tema?

FQ – Imagina. O Tom Jobim ficou rico?

BH – Não sei. Talvez tenha ganho algum.

Tamba 4 - We and The Sea (1968)

Tamba 4 - Samba Blim (1968)
FQ – Ninguém fica rico com isso. Alguém disse que o Luiz recebeu 350 mil, que pagaram. Eu recebia alguma coisa da ASCAP (American Society of Composers, Authors & Publishers), pois ele era associado. Mandavam os cheques lá para casa. Apareciam 150 dólares, 200 dólares, 10 dólares. Era devido às músicas dele que tocavam por lá. Ele gravou dois discos nos Estados Unidos, com o Tamba Trio. Em Los Angeles, com o Creed Taylor.

BH – Luiz passou muito tempo em Los Angeles?

FQ – Ele ia e voltava. Ele recebeu convite para ser professor convidado na Berkley University, em Boston. O Diogo Monzo não se conforma com isso: o Luiz não aceitou. O negócio dele era o Brasil.

BH – Parece o Tom Jobim. Ia lá, mas sempre voltava ao Rio.

FQ – Sabe da história do Tom Jobim? Ele dizia: Nova York é ótima, mas é uma merda; o Brasil é uma merda, mas é ótimo.

BH – Boa. Mas quem o Luiz Eça admirava no piano brasileiro? Alguma predileção?

Egberto Gismonti
FQ – Não. Ele era amigo do Egberto [Gismonti].

BH – Outro piano, outro estilo.

FQ – Sim, outro estilo, completamente diferente.

BH – Egberto chegou a estudar com o Luiz?

FQ – Não. O Luiz gravou disco no selo do Egberto. Ele gostou muito do livro “Bodas da Solidão”. Me escreveu uma carta linda.



BH – E aquele disco Bill Evans e Luiz Eça, gravado ao vivo no Chicko’s Bar, no Rio de Janeiro, em 1979? O registro é raro, mas a qualidade da gravação é bem ruim, não acha?

FQ – Aquilo é uma aberração. Foi gravado com toda aquela barulheira. O Bill morreu e o cara que fez a gravação a vendeu para os japoneses. E aí?

BH – Verdade. Não fizeram nenhum trabalho de melhoria do áudio.

FQ – Nada. 

BH – Você é religiosa?

FQ – Tenho muita fé. Já fui premiada com muitos milagres. Tenho meus interesses particulares.

BH – Crê em reencarnação?

FQ – Não sei. Acredito que o espírito é diferente da alma.

BH – Como assim?

Diogo Monzo
FQ – A alma é muito ligada à matéria. Quando a matéria morre, a alma morre junto. Mas o espírito é tão superior que ele permanece. Veja: esse menino (Diogo Monzo) tinha 11 anos de idade quando o Luiz Eça morreu.

BH – Você vê alguma semelhança física entre eles?

FQ – Nenhuma. Ele tinha 11 anos, nunca viu o Luiz Eça, nem de perto e nem tocando. Viu pela internet. Na verdade, (Diogo Monzo) é o Luiz Eça do século XXI. Digo isso com toda a certeza.

BH – Vê o mesmo potencial criativo, guardadas as devidas diferenças?

FQ – Sim, de arranjador. A mão esquerda. A primeira vez que ele tocou para um professor, que foi aluno do Luiz, este professor perguntou: você conhece Luiz Eça? O Diogo disse: não. O professor disse: você é o Luiz Eça! Levou o Diogo na casa dele, mostrou o Luiz. Daí ligou para o [pianista e compositor] Osmar Milito e falou: Osmar, estou aqui com o novo Luiz Eça. Ele tem um interesse de entrar nos abismos da composição do Luiz. Isso é o que eu acho bonito. Tem muitos por aí que tocam lindo, mas esse menino é diferente. Esse som que ele tocou [a inédita Olhar de Princesa] só quem sabia era eu. Tinha na minha cabeça. Ele harmonizou, daí eu falei: vou lhe dar a parceria [com Luiz Eça]. Falei com vários, Mario Adnet, Bebeto, Gilson Peranzetta e eles diziam: ê, Fernanda, imagina, não vou mexer nisso. O Diogo Monzo pegou a melodia, harmonizou e pronto. Não sei ainda o que vou fazer com ela, vamos continuar estudando.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Luiz Eça na universidade - Diogo Monzo

Tivéssemos apreço por nossa riqueza cultural, 
o nome de Luiz Eça não seria uma incógnita para tantos brasileiros

Luiz Mainzi da Cunha Eça (1936-1992)

Na cabeça do redator...

Se no canto temos a figura do intérprete – e na música popular brasileira Elis Regina é a maioral –, na música instrumental, excetuando os eruditos, também temos figura similar, o intérprete que ultrapassa as fronteiras da mera execução correta e, acrescentando algo próprio, arremessa o ouvinte aos píncaros da experiência aural.

Não há definição que sirva, mas o intérprete que não canta, que toca, sobretudo se for pianista, de alguma maneira está sempre recriando a música alheia ou a própria, valendo-se do improviso como método de abordagem ou ponto de partida. Claro, o improvisador corre riscos, porque viver é correr riscos.

Tamba Trio: Helcio Milito, Luiz Eça e Bebeto Castilho
E sem mais, neste país, Luiz Mainzi da Cunha Eça (1936-1992), o Luizinho Eça, descendente do escritor português Eça de Queiroz, mestre da harmonia, sinônimo de samba-jazz, mais conhecido como o pianista do extinto Tamba Trio, pode perfeitamente ser entronizado no panteão dos nossos grandes intérpretes, pois sozinho vale por uma orquestra. Acorda, Brasil. Vamos ouvir Luiz Eça!



E não apenas. O que expressou ao piano, seja em gravações ou nas célebres noitadas a fio nas mais bacanas casas de shows que o Rio de Janeiro já teve, é de grande valor cultural e musicalmente sensacional. Aponte um deslize na discografia do Tamba Trio. Nos discos solos. Não há. O que há é uma musicalidade exuberante, de arranjos antológicos. Sem falar no toque do piano, transformando qualquer composição em exercício de estilo, impondo uma assinatura autoral.

Ajudado pela família Guinle e por JK, Luizinho Eça passou temporada de estudos na Europa, mas desistiu de seguir uma carreira de concertista erudito, preferindo a liberdade da música popular e do jazz, perfeitos campos de prova para o improviso e os arranjos.


Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal são os nomes por trás de um clássico da Bossa Nova e da Música Popular Brasileira, o LP “Barquinho” (1961), da monumental Maysa (1936-1977).

Fiquei muito emocionado quando ouvi o Luizinho regendo uma “orquestra” de violinos na gravação antológica de O Barquinho. Ele era quase um garoto, e seus pais, já bem velhos, assistiam encantados à gravação. Naquele momento senti que tinha descoberto um gênio. E, desde o momento em que o convidei para trabalhar comigo, nos tornamos amigos e parceiros. Fizemos algumas músicas maravilhosas como Maysa e Melancolia, entre outras.

Ronaldo Bôscoli (1928-1994), em depoimento a Luiz Calos Maciel e Ângela Chaves, 
no livro “Eles e Eu – Memórias de Ronaldo Bôscoli” (Ed. Nova Fronteira)

Maysa Figueira Monjardim (1936-1977)
Lembrando: a doce heavy metal Maysa, nessa época bandeou para o lado da Bossa Nova, em grande tentativa de chacoalhar a carreira. Chega dos maravilhosos bolerões, a sofreguidão (sofrência é o cacete!), a bebedeira do coração partido. Nada melhor que a tranquilidade zen da Bossa Nova, para acalmar o vulcão em erupção.

Como dito, o trio – Bôscoli no comando – acha que domou Maysa (mentira, ninguém nunca conseguiu) no estúdio e mandou sequência matadora nos dois lados do LP. “O Barquinho” (Menescal/Bôscoli) abre os trabalhos, enquanto as demais não ficam atrás. O terrível Bôscoli – que aparecia como letrista em sete das 12 faixas – tentava comandar a carreira de Maysa e introduziu Luiz Eça como diretor musical.


Na ótima biografia “A Bossa do Lobo” (Ed. Leya), de Denilson Monteiro, consta série de episódios envolvendo a agitada turnê de Maysa na Argentina, em 1961, da qual tomaram parte os meninos da Nova Onda: Luiz Eça (23 anos); Luiz Carlos Vinhas (21), piano; Roberto Menescal (23), guitarra; Bebeto Castilho (21), baixo; Helcio Milito (30), bateria; e Ronaldo Bôscoli (32), produtor e empresário.

Por quê dois pianistas (Eça e Vinhas)? Segundo Bôscoli, Luizinho Eça fazia os arranjos, tocava as lentas, enquanto Vinhas mandava as agitadas. Assim foi.

E-D: Helcio, Luiz Eça, Maysa, Menescal, Bebeto e Vinhas
Eça (primeiro à esquerda) e a turma que segurou Maysa na Argentina
Isso desvia um pouco a conversa em torno de Luiz Eça, mas vale a lembrança de que Denilson Monteiro nos informa que Maysa e Bôscoli protagonizaram cenas inacreditáveis de molecagem (tudo regado à bebedeira, óbvio), em Buenos Aires, como soltar fio cheiroso em boate, bombinhas em restaurantes, também atiradas da janela do hotel. Confusão na certa com a polícia portenha, pois os Hermanos viviam assustados desde a ruidosa deposição de Juan Domingo Perón, em 1955.

Só para ter uma ideia, puto da vida, Menescal queria ir embora (e a turnê nem tinha chegado ao Uruguai), não acreditando na falta de profissionalismo da cantora e seu empresário e de estar envolvido nesse tipo de situação. Quanto a Luiz Eça, certamente foi levado na conversa de Bôscoli e teria protagonizado a lamentável cena de entrar vestido de mulher em um show de ninguém menos que Nat King Cole, que cumpria datas em Buenos Aires.

Lenda ou não, Luiz Eça (ou Luiz Carlos Vinhas) e Bôscoli resolveram ir ao show do grande Nat vestidos nas roupas da cantora, enquanto Maysa se enfiou em um suit (smoking, como gostam os brasileiros), tudo porque na boate havia a promoção “damas grátis”.

Ronaldo Bôscoli e Maysa desembarcam no Galeão (1961)
O desfecho dessa viagem, como sabemos, foram os maus lençóis em que se meteu o “Rei do Charme”, Sr. Bôscoli, que viu o noivado com Nara Leão desmoronar, assim que saíram do avião, no Galeão, em julho de 1961, e os repórteres correram para ouvir a boa nova que Maysa havia preparado à revelia do velho Lobo: que estava ali para anunciar o noivado com seu produtor e empresário Ronaldo Fernando Esquerdo e Bôscoli.

Nara Leão, em 1964
Nara, os joelhos mais cobiçados daquela época, nunca mais quis conversa com o cara que tempos depois viria a casar com Elis Regina.

Edição japonesa do CD "Luiz Eça e Cordas" (1966)
Luiz Eça, portanto, é protagonista das mais incríveis páginas da nossa música. O garoto que acabou substituindo o ídolo Johnny Alf, na boate Plaza, e tocava feito profissional, em 1955, viu o nascer da Bossa Nova, a ferveção no Beco das Garrafas; gravou discos clássicos e fez turnês consagradas ao exterior com o Tamba Trio; os arranjos no primeiro disco de Milton Nascimento; a composição “The Dolphin”, que virou um standard mundial do jazz. Muitos atributos, mas por motivos insondáveis declinou de muitas coisas que poderiam ter-lhe trazido, quem sabe, o reconhecimento internacional. O que nada invalida o grande artista que foi, ao ponto de ser admirado e estudado na academia.

Na universidade...

Vista aérea da Universidade de Brasília


Por alguma circunstância, que por ora não importa, Mr. Menezes viu-se levado aos domínios da Universidade de Brasília (UnB). No auditório do Departamento de Música daquela instituição, uma movimentação em torno do recital de mestrado do jovem pianista Diogo Monzo.

Sua tese “Improvisação Musical e Um Improvisador: A Música Sem Fronteiras de Luiz Eça” não deixava dúvidas: Luiz Eça estava sendo recriado 24 anos depois de ter se despedido do “planeta dos malucos”, como lembrou o amigo de fé, irmão camarada, o figuraça Luís Carlos Miéle (1938-2015), brother inseparável de Ronaldo Bôscoli.



Monzo, Antunes e Di Steffano recriando o Tamba Trio
Diogo Monzo e o espírito de Luiz Eça
Acompanhado dos músicos Di Steffano (bateria) e o Doutor Alexandre Antunes (contrabaixo acústico), e com breve intervenção do guitarrista Eudes Carvalho, Diogo Monzo fez baixar musicalmente o espírito do extinto Tamba Trio (reencarnação é um termo muito forte), grupo ao qual Luiz Eça esteve tão relacionado.

Tamba Trio, com Rubens Ohana na bateria
Segura aí, um instante, mais uma vez. O formato trio de jazz não é invenção brasileira, mas o formato trio de samba-jazz, sim, pode nos ser atribuído. A história nos conta sobre a criação da batida da Bossa Nova e o desespero dos músicos americanos em adotar aquela síncope, provavelmente inventada pelo baterista Milton Banana. Ou teria sido o Edison Machado?

O pessoal do blog Búzios Bossa Blog, por exemplo, lembra que em 1961 o Tamba Trio (Eça ao piano; Bebeto Castilho, no baixo; e Helcio Milito, bateria) “explodiu” no Beco das Garrafas tocando hard-bossa (ou samba-jazz). Aliás, parabéns ao pessoal desse blog pela “biografia incompleta” de Luizinho Eça. Mr. Menezes recomenda a leitura.

Mas olha o repertório do recital de Diogo Monzo e convidados: “Mestre Bimba”, “Alegria de Viver”, “Melancolia”, “Imagem”, “Weekend”, “Reflexos” e “The Dolphin”. Ou seja, o suprassumo da obra de Luiz Eça, faixas gravadas com o Tamba Trio e da carreira solo, incluindo a mencionada “The Dolphin” (originalmente “Daulphine”, no disco “Luiz Eça, Piano e Cordas” [1970]), gravada por Bill Evans, Stan Getz e Michel Legrand.



O recital na UnB foi especial por diversos motivos. O principal, ninguém sai por aí tocando Luiz Eça e fica por isso mesmo. A maneira natural com que Diogo Monzo encara o teclado, sem nenhum temor do que dali vai sair, faz a felicidade do ouvinte. E recriar Luiz Eça não é para qualquer um. Você pode até não entender os processos musicais, mas é impossível ficar indiferente ao talento desse rapaz.

Fernanda Quinderé (centro): convidada especial
E outra: na plateia do abafado auditório da UnB, convidada muito especial, uma emocionada Fernanda Quinderé, jornalista, escritora, atriz, apresentadora de TV, companheira e admiradora privilegiada de Luiz Eça, com quem partilhou vivências e histórias, uma big love story, e praticamente fez com que o músico trocasse a noite pelo dia, isto é, deixasse as noitadas nas boates e passasse a dar aulas em casa, de improviso e harmonia.

Simone e Luiz Eça (1974)
Luiz Eça foi o mestre de incontáveis pianistas: Leandro Braga, Mu Carvalho, Claudio Dauelsberg, Mario Boffa Jr., Mario e Chico Adnet, entre outros. O desfile dos que o procuravam, para consultas e problemas harmônicos é igualmente notável: Leila Pinheiro, Paula Morelembaum, Maúcha Adnet, Mariana de Moraes, Carlos Lyra e Sivuca.

Mesmo sem nunca ter estudado diretamente com Luiz Eça, o mestrando Diogo Monzo é praticamente um aluno. Ele diz que a liberdade de tocar é a característica mais relevante que encontrou no som do pianista do Tamba Trio. Exatamente a liberdade de um artista com grande domínio técnico que sempre atuou no limite da sensibilidade.

Sua dissertação não parece ser a primeira sobre Luiz Eça. A pianista norte-americana Sheila Zagury defendeu tese sobre o criador Daulphine/The Dolphin, em 1996: “A harmonia criativa: uma descrição dos procedimentos didáticos de Luiz Eça”.

O Blog do Hektor conversou com Diogo Monzo antes da apresentação no auditório do Departamento de Música da UnB.

Diogo Monzo
Blog do Hektor  – Como você chegou até o Luiz Eça?

Diogo Monzo – Eu conheci o Luizinho quando fui estudar no Rio. O conheci através do Roberto Alves, que foi aluno dele. Quando cheguei lá o Luiz Eça já havia falecido.

BH – Nunca tinha escutado?

DM – Conheci lá no Rio.

BH – Algum disco específico?

DM – O Roberto Alves tocou umas músicas dele no piano. Daí fui pesquisar mais e achei discos do Tamba Trio.

BH – Acho que da primeira formação do Tamba Trio só o Bebeto Castilho ainda está por aí, não é mesmo?

DM – Sim, o baixista Bebeto, que depois passou para a flauta. Lembra da Copa de 98? A Nike usou como tema uma música do Tamba Trio.



BH – “Mas Que Nada”, do Jorge Ben?

DM – Isso.

BH – Essa versão do Tamba é realmente irresistível. Ao vivo é que era um arraso. Mas o que você curtiu no piano do Luiz Eça?

DM – O jeito livre de tocar.

BH – Você sacou elementos de improvisação?

DM – Sim. Considero meu piano parecido com o do Luizinho Eça, é fruto de muito escutá-lo. É muito livre, solto.

BH – Luiz Eça parece que não se prendeu a um único gênero. Fez trilha sonora, muitos arranjos, um monte de coisas.

DM – Não se prendeu, daí o nome da pesquisa: “A Música Sem Fronteiras...”. Ele não teve essa coisa de se preocupar: isso aqui é popular, isso é erudito.

BH – Temos uma boa tradição de pianistas neste país. Desculpe a insistência: por que o Luiz Eça, dentre tantos?

DM – Primeiro a identificação com o jeito dele de tocar. Não sei a pessoa, não o conheci.

BH – Ok, e na sua pesquisa, que aspectos você se ateve?

DM – Me ative a quatro solos improvisados dele. Transcrevi esses solos e na pesquisa coloco como esses processos eram usados pelo Luizinho Eça.

BH – Você fala de peças conhecidas dele, tipo “The Dolphin”?

DM – Acho que essa foi a primeira que ouvi, depois fui buscar as coisas dos primeiros álbuns do Tamba Trio.

BH – O Tamba Trio era meio Bossa Nova.

DM – Eles tocavam o repertório da Bossa Nova, mas não eram Bossa Nova. Se você ouvir vai perceber as diferenças.

BH – Era uma linha mais jazzy?

DM – O jazz americano e elementos da música erudita. O Eça teve formação erudita.

BH – Gosto dos dois volumes Luiz Eça Piano e Cordas.



DM – Ele teve 29 trabalhos gravados.

BH – Discos do Tamba Trio, você até acha um ou outro, mas mesmo na internet é complicado encontrar coisas do Luiz Eça.

DM – É verdade. Já procurei várias coisas que ainda não consegui encontrar. Um dia eu estava numa cidade, não lembro qual agora, e vi uma mulher vendendo uns discos usados. No meio deles estava lá: “Luiz Eça, Piano e Cordas”. Há anos que procurava. Quem tem não se desfaz. Paguei R$ 1,50 por ele!

BH – Que sorte, hein. Os discos, igual aos livros, vêm até você.

DM – É. Voltando à pesquisa, peguei os solos improvisados e os coloquei na partitura, para mostrar o que o Luiz Eça estava fazendo.

BH – Nesses processos que você menciona, não parece complicado separar o músico e o artista Luiz Eça? Digo, ele tinha uma baita personalidade, que influenciou bastante a própria carreira, não é?

DM – Sim.

BH – Luiz Eça é o nome por trás do início da carreira de diversos artistas, não é mesmo?

O primeiro Milton (1967), com o Tamba 4

DM – Sim. Ele lançou o primeiro disco do Milton Nascimento, acompanhou Edu Lobo, Maysa, Gozaguinha, grandes nomes da nossa música.

BH – Como você vê o trabalho de orquestração que ele fazia?

DM – Acho que ele era um excelente orquestrador. O primeiro disco do Milton, “Travessia”, com acompanhamento do Tamba Trio, é considerado um divisor de águas na música popular brasileira.

BH – Interessante, pois nem o Tamba Trio e nem o Luiz Eça solo fizeram parte do movimento “Clube da Esquina”.

DM – Bem, naquela época ninguém conhecia o Milton.


BH – Teu disco “Meu Samba Parece Com Quê?” tem elementos de Luiz Eça?

DM – Esse foi o meu segundo CD. Tem seis músicas minhas, uma do Tom Jobim, uma do Ernesto Nazareth e uma do Nabor Nunes. É um trabalho que tem o foco na improvisação de maneira livre. Esse foi o meu divisor de águas.

BH – Muito bem gravado, por sinal.

DM – Foi gravado no (estúdio) Beco da Coruja, com músicos daqui, menos o Rodrigo, que é de São Paulo. Basicamente, são minhas composições, os temas são pequenos, pois o disco é voltado para a improvisação.

BH – Improvisação tem um timimg? Ela precisa acontecer naquele tempo certo?

DM – Na minha opinião, improviso muito longo é difícil para quem está ouvindo, a pessoa se perde. Tem gente que gosta, mas para mim, já deu.

Diogo Monzo? Não. Luiz Eça

BH – Você nunca pega uma canção ou toca uma peça apenas do ponto de vista formal?

DM – Não, raramente. Sempre deixo acontecer alguma coisa. Para mim, a improvisação tem a ver com o erro. A partir do momento que você erra, você procurar consertar. É quando surgem coisas que você não estava esperando.

BH – Em solo ou em grupo?

DM – Em grupo a gente segue muitas vezes um “mapa”, não necessariamente aquilo que está escrito, mas é uma direção, um norte. No CD, por exemplo, você tem as composições pequenas, as músicas têm um número de compassos, a gente tem essa referência como se fosse um mapa.

BH – Falar em CD, você tem algum trabalho inédito?

DM – Acabei de gravar um CD com a obra do Luiz Eça.

BH – Com qual formação?

DM – Com um trio. Esse trabalho está pronto, mas agora não posso dar muitos detalhes. Aguarde o lançamento.

BH – “The Dolphin” está presente?

DM – Sim.

BH – Essa composição é a mais conhecida dele, não?




DM – Sim, a peça que fez ele ficar conhecido no mundo inteiro. Bill Evans gravou. O interessante é que ele a registrou nos dois lados do disco [“From Left To Right” (1971)]. Stan Getz também gravou e até batizou um disco com esse nome [“The Dolphin” (1981)]. E Michel Legrand, que em 2002 gravou um disco em homenagem ao Eça. Toots Thielemans também gravou.

BH – Você acha que o Luiz Eça está por trás do que hoje se conhece como Brazilian Jazz?

DM – Não, ele não era Brazilian Jazz. O Luizinho era único, pois só ele fazia aquelas coisas. Você ouve o piano e você sabe que é o Luiz Eça. Pode ouvir e comparar, ele tinha o jeito dele de tocar.

BH – Considera que ele abriu uma escola, não exatamente no sentido formal?

DM – Acho que ele poderia ter aberto uma escola, mas não tinha essa pretensão. Na música popular brasileira, o Luiz Eça abriu muitas coisas, foi pioneiro em muitas coisas.

BH – Tipo o quê?

DM – A questão harmônica, que não havia antes. Isso veio do Luizinho, veio de Ravel, Debussy. O Luiz Eça trouxe essas coisas para a nossa música.

BH – Mais até que Tom Jobim?

DM – Sim. No livro da Fernanda Quinderé, esposa do Eça, ela conta que “Insensatez”, do Tom, ao contrário do que muitos pensam, não foi baseada em prelúdio de Chopin, na verdade foi baseada em Luizinho Eça. O Tom admirava muito o Luizinho. Ele foi professor de muita gente: Ivan Lins, Edu Lobo, Guinga, por aí.