Música para ouvir (Arnaldo Antunes e Edgar Scandurra)
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Arnaldo: música para esquecer de si |
Música para ouvir no trabalho
Música para jogar baralho
Música para arrastar corrente
Música para subir serpente
Música para girar bambolê
Música para querer morrer
Música para escutar no campo
Música para baixar o santo
Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir
Música para compor o ambiente
Música para escovar o dente
Música para fazer chover
Música para ninar nenê
Música para tocar novela
Música de passarela
Música para vestir veludo
Música pra surdo-mudo
Música para estar distante
Música para estourar falante
Música para tocar no estádio
Música para escutar rádio
Música para ouvir no dentista
Música para dançar na pista
Música para cantar no chuveiro
Música para ganhar dinheiro
Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir
Música pra fazer sexo
Música para fazer sucesso
Música pra funeral
Música para pular carnaval
Música para esquecer de si
Música pra boi dormir
Música para tocar na parada
Música pra dar risada
Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir
Que a canção encerra, por excelência, a linguagem verbal e a não verbal, isso a gente aprende no ensino fundamental. Preste atenção, música e letra sempre se deram muito bem no formato canção. Auxiliado por uma melodia, as letras espelham uma situação e passam uma mensagem ao ouvinte.
Pouco importa se é “Vem, vamos embora, que esperar não é saber”, um grito de guerra; ou “Há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”, puro nhém-nhém-nhém.
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El temido destemido JR Tinhorão |
Cada canção evoca uma coisa. É assim desde tempos imemoriais. José Ramos Tinhorão, o temido destemido, em seu estudo sobre as origens da canção urbana, lembra que o cancioneiro, enquanto cultura de massas, tem origem na formação das cidades, e se deve à apropriação individual do canto acompanhado de instrumento harmônico, em oposição à música coletiva praticada na Antiguidade e na Idade Média.
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Para melhor entender a MPB |
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Domingos Caldas Barbosa, rei da modinha e do lundu |
Tinhorão toma Lisboa como argumento e seu fio condutor dos primórdios da canção nos leva à modinha e o lundu e Domingos Caldas Barbosa, o homem que praticamente inicia o que hoje conhecemos como Música Popular Brasileira.
Tinhorão, muito figura, tem lá sua lógica. Entretanto, não é disso que este texto trata. Falemos da canção como espécie de observatório social, de reflexo de acontecimentos e de olhar crítico diante do status quo. Este é o realce de duas interessantes exposições, que tratam da canção, e que podem ser visitadas gratuitamente, no Museu dos Correios e na Galeria de Arte do Banco Central, em Brasília. Nos dois casos, uma bela aula de cultura brasileira.
Primeiro, “A Música Canta a República” (em exibição no Museu dos Correios). Trata-se de abrangente painel multimídia levado a termo pelo jornalista e ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Governo Lula), Franklin Martins.
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Franklin Martins, para os detratores, o "Goebbels" do governo Lula |
Numa bela pesquisa histórica, Franklin Martins montou o projeto de esmiuçar a produção fonográfica brasileira, partindo da premissa de que a canção em suas mais variadas formas (cançonetas, maxixes, marchinhas, sambas, mpb, rock, rap, baião, funk, etc) forneceu visão crítica, acompanhou os fatos e sempre foi trilha sonora dos acontecimentos da República brasileira, desde que esta foi criada em 1889, marcando o fim da era imperial.
A trabalheira de Franklin Martins e equipe de pesquisadores apresenta um painel de 110 canções, em mais de 1000 catalogadas, cobrindo um período de 100 anos da República, de 1902 a 2002. Pode apostar: em cada ano surgiu pelo menos uma canção emblemática, dando conta de que o regime republicano, conhecido pela tese de que o bem comum do povo prevalece sobre o interesse particular, é (até aqui) o que de melhor existe, mas como é cheio de falhas, e povoado por abutres e poucos santos, revela ser lugar propício para a contestação, as loas e a crítica, não exatamente nessa ordem.
A exposição ora em exibição no Museu dos Correios materializa e sintetiza a pesquisa apresentada nos três volumes de “Quem foi que inventou o Brasil? – A música popular conta a história da República”. No projeto consta ainda um
website, com acesso ao conteúdo dos capítulos, as canções digitalizadas e respectivas letras. Tudo raridade; a história vista através da música.
Em que outra circunstância ficaríamos sabendo de “As laranjas da Sabina”, canção escrita em 1890, por Artur Azevedo e Francisco Carvalho, que parece inaugurar o protesto na música popular brasileira? Nos estertores do Império, no Rio de Janeiro, um subdelegado de polícia proibiu a mulata Sabina de vender frutas em frente à Escola de Medicina. Foi o suficiente para acender uma passeata pelo centro da cidade, que terminou com vivas à República.
A pesquisa encontrou o fonograma de 1904, da Casa Edison. Na gravação, a intérprete Pepa Delgado canta os versos: “Sem banana, macaco se arranja / E bem passa o monarca sem canja / Mas estudantes de medicina / Nunca podem passar sem as laranjas da Sabina”.
Eis o ponto de partida para abordar músicas que marcaram diferentes épocas de nossa história republicana, assim agrupadas na exposição: a República Velha, a Revolução de 30; Vargas no Poder; Democracia de Massas; Anos Dourados?; Ditadura e Resistência até os nossos dias.
Nossos dias, força de expressão. Conforme dito, a exposição e os livros de Franklin Martins cobrem um período de 100 anos da República, de 1902 a 2002. Segundo o jornalista, não há fato relevante da política que tenha escapado ao olhar e ao ouvido atento de compositores e letristas. Mas é interessante notar que o material termina exatamente quando o ex-operário Luís Inácio Lula da Silva assume o poder, em 2003.
Daí fica a pergunta: ok, os vários períodos da República motivaram manifestações que se traduziram em música, canções de diferentes estilos comentando este ou aquele fato. Mas, o que aconteceu de 2003 em diante?
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Geraldo Vandré |
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Chico Buarque, por Walter Carvalho |
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Pacotão, sempre na contra-mão |
Cite uma música de protesto composta durante os anos de chumbo? São inúmeras:
“Apesar de Você” (Chico Buarque), e
“Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (Geraldo Vandré), talvez as mais conhecidas. Nos anos 1980, a Legião Urbana e
“Que País É Esse?” mostravam que os artistas mantinham o discurso afiado. Agora cite uma escrita de 2003 pra cá. Que autor lhe ocorre? Pode pensar à vontade, mas é estranho, faltam bons exemplos. As músicas do Pacotão, satírico bloco de Carnaval de Brasília, não contam, tá?
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GOG, poeta do rap nacional |
Aqui vai um autor, grande letrista: Genival Oliveira Gonçalves, o Gog, rapper de Brasília.
“Eu e Lenine (A Ponte)”, de 2006, é uma boa porta de entrada para uma poesia repleta de contestação e crítica social. Mas não é só. Nesse diapasão, de 2003 até hoje, só mesmo o rap nacional e seus representantes para lembrar que “hay gobierno, soy contra” e outros discursos que tocam na ferida das mazelas sociais e dos escândalos da vida pública neste país.
No fundo, parece que pararam de abordar a crítica política e social na canção brasileira. Questão de mercado? Situação socioeconômica? Tendência mundial? Perda de relevância? Talvez. Mas não culpem o Lula e nem o Franklin Martins por isso. Motivos nunca faltaram para soltar o verbo e talvez seja preciso outra pesquisa para dar continuidade à perspectiva histórica sobre o que cantamos na República nesses últimos 15 anos.
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Oh, não! Estragaram os Lps. |
Agora, o que incomoda mesmo na exposição “A Música Canta a República” é ver uma quantidade considerável de discos long-playings como peças decorativas, forrando paredes do Museu dos Correios. Vocês vão estragar esses discos, perceberam? Alguns estão enfiados em um prego. Basta escolher um e pedir para o monitor tocar em um toca-discos à disposição. Isso se já não estiverem arranhados. Que desperdício!
Anos Rebeldes
Entende-se, observando o material apresentado pelo jornalista Franklin Martins que as eras e os acontecimentos sempre forneceram a matéria-prima das canções que fazem comentários sociais. Isso fica bem evidente na exposição “A Persistência da Memória”, em cartaz na galeria de arte do Banco Central, Setor Bancário Sul, em Brasília.
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BC em Brasília: tesouros |
O negócio aqui é o seguinte: o Banco Central do Brasil mantém, em sua sede em Brasília, um Museu de Valores, que conta a história dos valores (claro!), incluindo a história do dinheiro, a moeda dos diversos países, barras de ouro, e a maior pepita desse minério encontrada no mundo, a Canaã, de 60 kg, localizada em Serra Pelada, no estado do Pará.
Ocorre que o BC mantém em sua guarda uma inestimável coleção de obras de arte, aliás, cabe um capítulo inteiro sobre isso. Rapidamente, conta a história que um dos últimos atos do então ditador, general Emilio Garrastazu Médici, em 13 de março de 1974, foi sancionar a Lei n° 6.024, que regula as intervenções e liquidações de instituições financeiras.
Foi usando esse dispositivo legal que o BC decretou a intervenção do Banco Halles, historicamente um dos primeiros a quebrar na famosa crise do petróleo, de 1973. Tal banco era detentor de interessante patrimônio de obras de arte, que passou para a guarda do Banco Central. O Banco de Investimentos Áurea (BAI) foi outra instituição em situação semelhante e sua dívida foi abatida com a aquisição de quase 4 mil obras que estavam em poder da extinta Galeria Collectio e alienadas ao BAI por conta de empréstimo-maracutaia, um grande escândalo à época.
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Galeria Collectio, Itaim-Bibi, São Paulo (Acervo do arquiteto Eduardo Longo) |
Na história das artes brasileiras, a Galeria Collectio aparece, em 1969, como a grande impulsionadora desse mercado. Foi quando o país se deu conta de que as obras de arte eram um bom negócio e rendiam tanto quanto os papéis em bolsas de valores. O dono da Galeria Collectio, José Paulo Domingues da Silva, um capítulo a parte, era o cara que agitava esse mercado.
Em 27 de dezembro de 1973, José Paulo Domingues da Silva morreu de fulminante infarto, aí descobriu-se que, na verdade, ele era o italiano Paolo Businco, um estelionatário procurado pela Interpol e que as obras da Collectio eram dadas como garantia de empréstimos escusos e tal.
Com a intervenção no BAI, as peças da Collectio acabaram indo parar no Banco Central. Atualmente, 87% das obras que compõem o acervo de arte do BC são provenientes da Galeria Collectio. Toda essa história está muito bem contada nos painéis à disposição do público, na galeria de arte que ocupa o oitavo andar do prédio do BC, em Brasília.
Como são muitas as obras da coleção, sobretudo de arte moderna, de Volpi a Di Cavalcanti, de Maciej Babinski a Portinari, passando por muitos outros grandes nomes das artes plásticas no Brasil, o Banco Central desenvolveu a exposição permanente intitulada “A Persistência da Memória”, dividida em seis módulos curatoriais.
Atualmente, encontra-se em exibição Módulo 4, chamado de “Anos Rebeldes”, que tem como fio condutor a linha do tempo, de 1964 a 1978, os terríveis anos de chumbo da ditadura militar no Brasil.
Entre obras selecionadas de Aldemir Martins, Alfredo Volpi, Candido Portinari, Emanoel Araújo, Guilherme de Faria, Maciej Babinski, Juarez Machado, e outros, os curadores da mostra no BC resolveram ilustrar o período com músicas representativas da época.
Assim, no painel “Música para entender a década de 1970 no Brasil”, temos a seleção de algumas canções que dizem muito sobre o período mencionado. Quem for à exposição, encontrará fones de ouvido e players, nos quais é possível ouvir “Opinião” (Zé Keti) (1964); “Pra Não Dizer Que Não falei de Flores” (Geraldo Vandré) (1968); “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua” (Sérgio Sampaio); “Geleia Geral” (1968) e “Aquele Abraço” (1969) (Gilberto Gil); “Alegria, Alegria” e “Tropicália” (Caetano Veloso) (1967); “Apesar de Você” (1970) e “Cálice” (1973) (Chico Buarque).
Sim, músicas censuradas, registros de uma época em que os donos do poder mandavam um “cale-se” e queriam a todo custo dominar e moldar corações e mentes.
Serviço:
O quê – Exposição A Música Canta a República
Onde – Museu dos Correios (Setor Comercial Sul, Quadra 4, Bloco A, 256, Brasília-DF)
Quando – De 6 de novembro de 2015 a 24 de janeiro de 2016, de terça-feira a sexta-feira, das 10h às 19h. Sábado, domingo e feriados, das 12h às 18h00.
Entrada gratuita.
www.correios.com.br/cultura
O quê – Exposição A Persistência da Memória – Módulo 4 (Anos Rebeldes)
Onde – Galeria de Arte, 8° Andar, Edifício-sede do Banco Central do Brasil (Setor Bancário Sul, Quadra 3, Brasília-DF)
Quando – De terça-feira a sexta-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita
www.bcb.gov.br