Eternamente agradecido por ter passado horas e horas, dias, meses, anos de toda uma vida ouvindo Talk Talk e admirando a persona artística de seu líder, Mark Hollis.
No prefácio de Piano Book: Partituras em Notação Tradicional e Melodia Cifrada – Volume 2 (2013), obra da pianista, compositora e professora Elenice Maranesi, o pianista Leandro Braga vai direto ao ponto. Afirma que Elenice faz com seus arranjos aquilo que os tocadores, profissionais da música, deveriam estar empenhados em construir: “uma exposição clara, simples, e muito efetiva da prática de tocar piano conforme uma estética chamada popular”.
“... temos na essência de nossa arte uma execução mais livre, intuitiva, muitas vezes mais ousada. Com poucos elementos fornecidos pelo arranjador ou compositor temos que montar nossa música, aliando criatividade e experimentação a alguns elementos teóricos básicos, essenciais”.
Leandro Braga
Elenice Maranesi (1987)
Conciso, Braga fala com propriedade sobre o ofício. Elenice Maranesi, paulista de São Bernardo do Campo, 74 anos, 70(!) dedicados à música, radicada em Brasília desde 1974, traduziu no livro, em partitura e melodia cifrada, digamos, o jeito brasileiro de se apropriar do piano e fazê-lo soar segundo um código verde-e-amarelo, se é que isso existe ou assim pode ser dito a respeito da música classificada como popular brasileira.
Não por acaso as palavras “brazilian” e “piano book brasileiro” saltam aos olhos na capa da obra. Assim, temos uma grande expoente do piano popular empenhada em enriquecer a execução instrumental (leia-se assinando arranjos), tanto em peças de compositores pátrios quanto em composições gringas que, uma vez vertidas para esse jeito brasileiro, fazem o toque do piano ser reconhecido, em verdade soar de maneira única, um verdadeiro estilo em meio à diversa escola pianística mundial. Brazilian jazz, ou Brazilian smooth jazz, diriam os que arrumam as músicas nas prateleiras de consumo.
É o que disse Leandro Braga. A execução mais livre, intuitiva e ousada se aplica perfeitamente tanto em Corcovado (Antonio Carlos Jobim) quanto em The Look of Love (Burt Bacharach/ Hal David), presentes na obra. A primeira, claro, é puro Tom Jobim, enquanto a segunda, linda balada de Bacharach, não foi exatamente pensada para ser tocada nesse Brazilian style. Observem: nada de homogeneização. Só é preciso ter em mente que sotaque o pianista quer imprimir à leitura.
"O piano popular brasileiro tem swing e sonoridade que resultam em um sotaque peculiar muito apreciado, porém considerado difícil de compreender, assimilar e reproduzir".
"Esmiuçando detalhes e particularidades que pudessem ser traduzidos em textos musicais, procurei chegar o mais próximo possível dessa linguagem brasileira ao piano".
"O propósito principal desse trabalho foi colocar na partitura algo que vai muito além das figuras e dos símbolos musicais"
Elenice Maranesi
Claro que essa conversa ficaria mais comprida e completa se, na genealogia do piano brasileiro, formos buscar as origens dessa escola. Essa divagação retrocederia a personagens e eventos passados, que definitivamente estão no cerne da questão (a chegada do piano no Brasil imperial, Gottschalk, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, os pianeiros que absorveram o boom do instrumento, os primeiros eruditos formados na Escola Nacional de Música, no Rio, Darius Milhaud no Brasil, Villa-Lobos, Magdalena Tagliaferro, etc.).
Elenice Maranesi (2018)
Sem mais, brothers & sisters, o objeto dessa postagem é Elenice Maranesi, pianista, arranjadora de alto calibre, representante da mais fina gema extraída da assim chamada música popular instrumental brasileira, termo amplo em sentido e estrito em significado.
A despeito de toda e qualquer categorização que confina o músico-artista em nichos ou celas trancafiadas, e com o perdão deste pensamento obtuso, Elenice Maranesi pode ser encontrada nesse departamento, o da música instrumental, fácil de ser chamada de jazz, porém, por ser feita de elementos reconhecíveis, extrapola a mera classificação.
Reconhecíveis, pois falamos de raízes. Nessa parte complicada e feliz do planeta ninguém escapa dos seguintes aspectos: no DNA da música brasileira vão estar sempre presentes a tradição nativa, a cultura dos colonizadores europeus, a África, a miscigenação e a incorporação de elementos de diferentes culturas. Quer você queira ou não. Isso aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil, iá, iá, mandava bem o velho Ary.
Elenice Maranesi é destaque na revista Roteiro Brasília, edição 286. Um pedaço da entrevista feita por este autor foi parar na revista. A maior parte, contudo, encontra-se neste blog. Então, pegue um café e boa leitura!
A gatinha Michelle, Elenice Maranesi e o piano Kawai RX7
Blog do Hektor – Vou começar por este [piano acústico] Kawai [modelo RX7, 3/4 de cauda] enfeitiçado que você adquiriu do [técnico-afinador, colecionador e connoisseur] Rogério Resende [Casa do Piano]. Até onde sei, esse instrumento foi muito cobiçado; era o favorito de vários músicos que vieram a Brasília e exigiam um bom piano. Vi tocar nele André Mehmari, Eudóxia de Barros, João Carlos Assis Brasil, João Donato, Leandro Braga. Todo mundo com um carinho imenso por esse piano. O que ele tem de diferente, além dessa questão sobrenatural?
Elenice Maranesi – O que ele tem de diferente é que agora ele é meu, hahaha.
BH – Boa. Não precisa dizer mais nada.
Rogério Resende tempera (enfeitiça?) o Kawai minutos antes de o show começar
EM – Eu podia ter comprado um carro novo, o meu está super velho, mas resolvi investir e ter essa coisa linda até o fim da minha vida. Ele está à minha disposição. Falo com ele, e ele me entende. O anterior que tive era só pose. Era um alemão muito antigo [Gerold]. Eu o chamava de Seu Jorge. Esse Kawai responde. Por mais que eu toque mal nele, ele responde. Tem som de verdade. Faz pianíssimo perfeito. Falo porque conheço. O Rogério trata os pianos como um pianista. Ele tem a cabeça de um bom pianista
Elenice Maranesi, 10 anos de idade
BH – Tá bom. Então, voltemos ao início de tudo. Sua trajetória musical e artística remete a São Bernardo do Campo, São Paulo, onde você nasceu, em 1944. Vi uma foto sua, mocinha, tocando no que parece ser o estúdio de uma emissora de rádio.
Cine São Bernardo, na Rua Marechal Deodoro, 1967
EM – Lá, só tinha um cinema onde tinha shows. Teve a caravana do Silvio Santos.... Eu devo ter a idade do teu avô. Na verdade, eram dois cinemas: Cine São Bernardo e Cine Anchieta. Uma rua só....
JK e o triunfo da indústria automotiva, anos 1950
BH – A indústria automotiva, nesse tempo, parecia dar os primeiros passos no país. São Bernardo já era o ABC paulista?
Praça Lauro Gomes, São Bernardo do Campo, 1952
EM – Não tinha esse nome. [À época] A vila era chamada A Vila. Santo André era metido a ser chique, maior. São Caetano ninguém nem falava, era como se fosse uma perninha de São Paulo. É tudo muito antigo.
BH – E como o piano entrou na sua vida?
EM – Encaixotado. O primeiro piano da minha vida entrou encaixotado em casa. Eu tinha 4 anos de idade. Meu irmão queria estudar piano e meu pai comprou um, à prestação.
BH – Que piano que era?
EM – Era um [piano brasileiro com nome alemão] Otto Halben, vertical, baixinho. A cidade era tão pequena, que foi um alvoroço: um piano! Enfim, era uma caixona enorme. Eu, pequeninha, olhava encantada. Um rapaz lá pediu ao meu pai para tocar um pouco. Ele tocava, mas na cidade não havia um piano. Meu pai permitiu, ele tocou e eu fiquei olhando, eu media a altura do teclado.
BH – E o que ele tocou?
EM – Tocou [o tango] La Cumparsita.
BH – Caramba, você lembra o que ele tocou.
EM – Sim. É o que eu escutava no rádio. Só tinha rádio, não havia televisão. Mas ele tocou La Cumparsita e depois que ele saiu eu fiquei catando as notas. Vi que ele pôs as duas mãos [no teclado].... Nunca toquei piano só com uma mão. Não sei dizer como.
BH – Intuição.
EM – Não sei. Mas o piano tinha que entrar na minha vida. E se fosse um trombone? Um cavaquinho?
BH – Uma tuba.
EM – Hahaha. Eu não seria a mesma pessoa, pois o piano faz parte.... Na família tínhamos o hábito de ir ao cinema uma vez por semana. A família toda. Em geral eu entrava acordada e saía dormindo, no colo do meu pai. Eu ouvia as trilhas sonoras, as músicas orquestradas antes dos filmes. De manhã, eu acordava, pegava minha chupeta e sentava ao piano, com a ajuda do meu irmão, e tocava o que tinha ouvido. Meu pai babava, minha mãe nem tanto. Quando as pessoas chegavam, meu pai dizia: vai, filhinha, toca. As pessoas ficavam: nossa! Eu achava aquilo: que chato! Hoje você vê na internet quantas criancinhas, até menores, tocando. Vi um chinesinho que fez um arranjo de Parabéns Pra Você! Com aquelas mãozinhas, usava o piano inteiro. Mudava de andamento, mudava tudo, muito bacana. Tudo na cabecinha dele.
BH – E o que é isso? Dom?
EM – Agora você me pegou. Não sei dizer, só sei que, pra mim, tudo foi muito natural. Não acho que nisso teve alguma interferência [espiritual]. Nasci assim. Meu irmão, cinco anos mais velho, falava: toca isso, toca aquilo.
BH – Erineu Maranesi.
EM – Ele escreveu muitas canções e também tem um trabalho com piano solo. Enfim, ele descobriu por um afinador que ia em casa que eu tinha o ouvido absoluto. Ele me punha longe e dizia para o afinador tocar uma nota. Daí me perguntava: Ica, que nota é essa? Não sei porquê, me chama de Ica até hoje. Eu já sabia as notas.
BH – Acertava em qualquer oitava?
EM – Sim, em qualquer oitava. Sabia melhor que hoje. Acho que estou perdendo [a capacidade], mas ainda tenho o ouvido absoluto. Meu irmão achava isso um negócio maravilhoso, extraordinário.
BH – Não deixa de ser.
EM – Nem tanto. Hoje em dia....
BH – Acho que a maioria não tem a menor ideia de que nota está ouvindo.
EM – Já tem gente que tem o ouvido absoluto e não usa. Professoras [de música] conhecidas tocam bem e tudo, mas tira a partitura, não tocam mais nada. Uma vez fiz um ditado harmônico para meus alunos, entre os quais, uma professora. Fazia os acordes e perguntava se era maior ou menor. Acordes simples. Ela dizia as notas, uma por uma, mas não conseguia juntar nos acordes. Não conseguia, agora já sabe. Se olho uma partitura, não vejo apenas as notas, eu escuto a partitura.
BH – É um treinamento, não? Você aprende a executar o que está escrito.
Elenice Maranesi e Ana Amélia Gomyde no piano duplo,
réplica de um Pleyel, feito por Rogério Resende
EM – Não entendo assim. [A pianista] Ana Amélia Gomyde tem os dois, também tem o ouvido absoluto. Ela toca lá os Zequinhas de Abreu, essas coisas, prefere a partitura. Se não tiver, ela sai tocando, acompanhando, não se aperta com isso. É uma das poucas eruditas que têm essa facilidade.
BH – Desculpe voltar a São Bernardo, mas foi lá onde você começou seus estudos?
EM – Iniciei com sete anos com a professora particular, a única que havia, que dava aulas para meu irmão. Com 7, já era uma veterana, tocava há 3. Lembro da primeira coisa que ela disse aos meus pais: olha, não pode deixar essa menina tocar de ouvido. Isso vai estragar o ouvido dela. Meus pais ficaram naquela de “ah, deixa a menina, coitada” e não me encheram a paciência com isso. Só que eu tinha que enganar a professora. Ela me mostrava as notas no papel, eu sabia que subia aqui e ali, fiz as ligações, ficou a coisa mais fácil do mundo ler a partitura. As coisas que ela me dava para estudar era no livrinho e eu achava muito chato. O que eu gostava era das trilhas de filmes, aquelas coisas do rádio que eu achava bacana. Continuei tocando de ouvido e aprendi a ler música. Acho que essa foi a grande coisa na minha vida, pois eu podia estar até hoje só tocando de ouvido. Acho que gente acaba perdendo muita coisa, inclusive ouvir o que você está tocando.
BH – Perdão, quando toca só de ouvido você perde o quê?
EM – Perco a capacidade de ler. Se eu não ler, perco metade da minha capacidade com música. Inclusive de escrever. Sempre escrevi muito. Depois que aprendi a base do negócio. Tipo, lembretes, para lembrar de uma música. Isso sempre foi fácil e ajuda. Inclusive para dar aulas. Aprendi assim, dos dois jeitos. Mas eu não estudava quase nada. Já tocava além daquilo.
BH – Por acaso, a professora usava o Método Mascarenhas?
EM – Hahaha. Não, não lembro. Começava com coisinhas bem leves. Desenvolvi muito a leitura à primeira vista, em que você pega uma peça que nunca ouviu e sai tocando. Como você lê um texto, você lê uma música. Às vezes, a pessoa precisa estudar e estudar, para poder tocar. Eu já tenho essa facilidade, o que ajuda muito quando você toca coisas como Claude Bolling. Se for nota a nota, devagarinho, nossa, não tocaria nem em dez anos. A leitura à primeira vista é interessante. A gente desenvolve o cérebro, enfim.
BH – Acho que essa professora não durou muito.
EM – Em São Bernardo, estudei com essa professora dos 7 aos 10 anos. Aos 11 entrei no que seria o Ensino Médio de hoje e parei com tudo. Não tinha mais aula de piano, mas continuei tocando. Tenho fotos por aí, tocando acordeom, acompanhando menina e menino cantor.
BH – No cinema, em São Bernardo....
EM – Sim, onde tinha o palco, o piano de armário. Era transmitido pelo rádio. Tinha aquela coisa de sorteios.
BH – Programa de auditório.
Senor Abravanel, o Peru Que Fala
EM – Isso. Quando ia o Silvio Santos, era a Caravana do Peru.
BH – Mas por quê?
EM – Não sei, chamavam ele de Peru. Acho que por causa das pernas brancas e ele ficava vermelho.
Elenice e o grupo de baile Skindô, anos 1960
BH – Faz sentido. Vi uma foto sua com um grupo chamado Skindô. Você com um teclado que não consegui identificar.
EM – Isso já foi bem depois. Era um grupo de baile. Esse teclado era um piano elétrico, não lembro a marca, mas era do conjunto. A gente tinha um empresário, que arrumava os bailes pelas cidades vizinhas de São Bernardo.
BH – Você tem um marco, com o qual considera que teve início a carreira musical?
EM – Bem, eu tocava em público, de ouvido. O menino cantava uma dessas músicas de sucesso do rádio e eu saia atrás, às vezes em um tom, às vezes em outro. Eu não sabia desse negócio de tom.
BH – Tocava intuitivamente.
EM – Música popular, música erudita.
BH – O quê, exatamente?
EM – Músicas populares. A menina, por exemplo, era espanhola. E cantava coisas na língua dela, tipo Granada. Eu a acompanhava. Ela ficou minha amiga. Meu pai nos levou a São Paulo, tocamos na rádio América. Ela vestia aquelas roupas espanholas e dançava. Ela me ensinou a dançar. Tenho fotos. Saia do piano e ia dançar ao som de um disco que ela levava, tudo na brincadeira. Coisa de criança, eu achava bonito. Tenho até hoje as castanholas.
BH – Rádio América, hein.
EM – Essa rádio tinha programa específico de música espanhola, também era feito em um auditório.
BH – Você alternava entre o piano e acordeom.
EM – Sim. Aqui tem uma historinha. Morávamos em uma casa simples, quarto e sala e um banheiro. Depois mudamos para a casa vizinha. Nessa, havia dois cômodos no fundo. Um professor veio de Santo André, e pediu ao meu pai para ceder um dos cômodos, para ele dar aulas. Ali conheci o acordeom, em uma época do boom desse instrumento. Quando peguei esse instrumento pela primeira vez, sai tocando. Achei as notas, é só saber fuçar. Isso eu sabia fazer. Vendo que eu levava jeito, o professor me pegou para ajudar a dar aulas. Que bandido, sem-vergonha! Quando fiz 14 anos, esse professor mandou fazer um bolo no formato de piano de cauda. Bolo de chocolate, com tecladinho branco. Foi o primeiro piano de cauda que vi na vida.
BH – Acho que foi premonição. Ele deve ter dito: Elenice, você vai comer o piano!
EM – Hahaha. Quanta coisa a gente lembra.
BH – Mas pelo que você fala, parece que o popular entrou com muito mais força em sua vida do que a música erudita.
EM – Peguei com a professora aqueles eruditos para principiantes, mas depois toquei a Marcha Turca, de Mozart, de ouvido.
BH – Uau.
EM – E não tinha o disco. Conhecia porque tocava muito no rádio.
BH – Bons tempos em que o rádio tocava isso.
EM – Isso. Ouvia e ouvia e tocava até errado alguns pedaços. Estudava em um colégio de freiras, no qual havia um piano trancado a sete chaves. Antes dos meus 15 anos, entrou em minha vida o João Gilberto, com Chega de Saudade. Aquele violão fez um zoom na minha cabeça. Lembro que falei ao meu irmão: vem, vem ouvir isso. Sentei no chão.... João Gilberto fez a minha cabeça. Pessoas da minha idade falam isso.
Pelé (17 anos) chora na conquista da Copa do Mundo, Suécia (1958)
BH – 1958, 1959.... Época de ouro. Democratização, JK, Brasília em construção, Maria Esther Bueno, Pelé, Copa do Mundo, Bossa Nova....
EM – Veja, os acordes no violão e no piano têm algumas diferenças. Os acordes do João Gilberto você não consegue fazer igual no piano. Os violonistas falam que nós, pianistas, conseguimos abrir mais os acordes. Conseguimos [no piano] fazer um acorde fechadinho, o que não dá para fazer no violão. Enfim, coisas da estrutura dos instrumentos. O que fiz foi transportar a sonoridade do violão [do João Gilberto] para o piano. No início dos anos 1960, eu já tocava Corcovado.
BH – Cantava também?
EM – Não. Nunca cantei. Minha única virtude é tocar um pouquinho de piano. E depois, por causa de, Jobim, Oscar Castro Neves, e vários outros, por influência deles fui fazer arquitetura. Vários deles fizeram arquitetura, pois era uma coisa ligada às artes. Curso superior. À época não havia cursos universitários de música. Aqueles melhores dotados, em dinheiro, iam para o exterior, Estados Unidos e Europa. Como todos aqueles na mesma condição, fui fazer arquitetura, no Mackenzie, em São Paulo. Morando em São Bernardo. Tomava três ônibus para ir e dois para voltar. Uma loucura. À tarde, eu “fugia” da faculdade, para assistir aos ensaios daqueles festivais da Record. À noite, eu tinha os ensaios do meu grupo, com o qual arrumava dinheiro para pagar a faculdade. O Skindô foi um desses grupos. Enfim, sustentei a faculdade com bailes.
BH – Conseguia conciliar a faculdade com a vida de músico?
Zimbo Trio e Elis Regina, circa 1966
EM – Meu filho, peguei uma segunda época terrível. Uma disciplina chamada Resistência dos Materiais, nunca esqueço. Ai, meu Deus, pior que Cálculo. Não conseguia estudar e fiquei para segunda época. Essa época foi fogo, mas também muito produtiva. Nesses ensaios no teatro da Record, entrava de penetra, mas vi Zimbo Trio, Tamba Trio, Luizinho Eça, Elis Regina. Fiquei encantada com o [gaitista] Maurício Einhorn. Até hoje fico impressionada com os improvisos que ele faz. Na verdade, ali foi uma aula de improviso. Ao vivo, sempre melhor.
BH – Então você circulou bastante em São Paulo nessa época de efervescência musical.
EM – Mantive meu curso de Arquitetura tocando na noite. Baile até às 4 da manhã. Perdia a hora, ia direto para a faculdade, dormia em cima da carteira. Essas partes são meio feias, sabe? Era sofrido, eu morava longe, em São Bernardo. Ensaiava nos altos de uma loja de piano, na Avenida São João. Toquei no Teatro de Arena. Do conjunto de baile, montei um trio, tocávamos bossa-nova. Enfim, foi uma fase muito rica.
BH – Epa, calma lá. 1963, 1964, Golpe Militar. O que você mais lembra desse período de conflagração?
EM – Em 64, eu estava no Mackenzie, quando recebemos a notícia das mudanças. Eu não sabia nada de nada, mas os estudantes foram os primeiros a sofrer com o Golpe. O Mackenzie foi invadido. Às vezes, depois de vários ônibus eu chegava lá e dava de cara com os portões fechados. Um sofrimento. Eu ficava torcendo para que a viagem não fosse em vão. Ninguém avisava. Morava lá no cafundó e no cafundó ninguém sabia o que estava acontecendo. São Bernardo, antes de o Lula aparecer, era uma ilha isolada.
BH – Então você presenciou aquele corre-corre nas ruas, estudantes brigando, a polícia baixando o pau.
Batalha da Maria Antonia, 1968: conflito estudantes da USP x Mackenzie
EM – Vi sangue nas ruas. Gente apanhando. Colegas sumiram. A gente perguntava: cadê fulano? Diziam: acho que foi viajar. Vai ver estava em lugar incerto e não sabido. Nesse aspecto, foi época ruim, com muita ansiedade. A gente ficava perto da Faculdade de Filosofia da USP, epicentro de revoltas, e era constante o movimento de policiais, o Exército.
BH – Esses acontecimentos influenciaram a música da época. Aliás, influenciaram a história.
EM – Pra mim, a parte musical decaiu muito em qualidade. Daí vieram as canções de protesto. Aquela harmonia toda rebuscada sumiu, o que importavam era a letra e a mensagem. Geraldo Vandré e tal. Isso me fez recolher, pois aquela música não me tocou. Digo, a música, a base harmônica, que sempre me chamou a atenção, era muito pobre. Um monte de gente que não era músico apareceu fazendo canções de protesto.
BH – De alguma forma, esse período é considerado dourado para a música popular brasileira.
EM – Estamos falando da música de protesto. Eu estava mais para o som de um cara que, pra mim, foi uma enorme influência: César Camargo Mariano.
BH – Aí tem algo de sambalanço, coisas derivadas da bossa-nova. Você não crê que aqueles acontecimentos motivaram a melhor safra de um Chico Buarque, por exemplo?
EM – Gente como o Chico na verdade ficou pouco tempo nesse negócio [de protesto]. Logo partiram para outra. Não sei de detalhes de quem partiu para o exílio e tal.
BH – Com o regime militar recrudescendo, AI-5 nas ruas, onde você estava?
PM e Fuzileiros Navais baixam o cassetete na UnB, 1977
EM – Vim para Brasília em 1974. Em 1977, teve algo ruim na UnB [Universidade de Brasília], parecido com o que ocorreu em 1968.
BH – Você formou em arquitetura. O que fez em seguida?
Jorge Antunes e GeMUnb, 1974
EM – Formei no Mackenzie. Quero lembrar que sou pianista, mas formada em Arquitetura. Entrei como estagiária na prefeitura de São Bernardo do Campo e depois fiquei como arquiteta. Fiquei sete anos na função. Nesse tempo, tocava à noite, nos bares da cidade. Nos que tinham piano, claro. Tocava com duo, com trio. Depois pedi licença da prefeitura, pois meu marido, Eurico, também arquiteto, melhor que eu, veio para Brasília, chamado para atuar na UnB. Ele ficou com emprego, eu sem. Essa é a fase de Brasília. Eu estava sem emprego e tinha visto, numa revista, lá em São Bernardo, que a UnB tinha um Departamento de Música, com aulas com enfoque moderno e contemporâneo. A reportagem era sobre o GeMUnb [Grupo de Experimentação Musical], do [maestro] Jorge Antunes. Eu fiquei entusiasmada, achando que iria ter música popular. Fui lá e vi que, para quem já tinha curso superior completo, não era preciso algo como o vestibular para ser admitido. Entrei, comecei a ter aulas e tal. Mas fiquei decepcionada. A coisa de música contemporânea era o lance do Jorge Antunes. Não tinha nada a ver comigo. A música contemporânea daquela época era aquela coisa sem pé nem cabeça. Não vou dizer que aquilo era ruim, enfim, não era pra mim. Até hoje não consegui entender aquilo. Pra mim, música tem que ter harmonia, melodia, ritmo. Alguém vai acabar puxando minha orelha por causa isso. Vai dizer: “tá vendo? Ela é quadrada”.
BH – Talvez você estivesse um passo à frente.
EM – Pra mim, o conceito moderno era outro. Lembro de o professor colocar no quadro negro algo assim: as notas de baixo [no pentagrama] tem a perninha pra cima, do lado direito; depois do Si, que fica no meio, as perninhas tem que ser para baixo. Ai, ai. Eu fiquei: nossa, o que é isso?
BH – Bê-á-bá no curso superior.
EM – Antes disso, lembrei, certa vez meu irmão apareceu em casa com uns livros de partituras do [pianista britânico] George Shearing. Eu devia ter uns 16 anos e sabia ler música. Vi as partituras abertas em cima do piano, e fiquei encantada. Fui conhecer a harmonização do George Shearing lendo as partituras, sem nunca o ter ouvido. Eram standards com o estilo dele, em dois estilos, aliás: um todo em bloco, tudo harmonizado; o outro, todo aberto e tal. Eu fiquei encantada com aquilo. Foi em Brasília que conheci Bill Evans, saber que ele existia. Lembro que as pessoas viajavam para o exterior e me perguntavam o que eu queria, perfumes, roupas. Eu dizia: quero partituras! E remédios para dor de cabeça, coisa que eu tinha bastante. Foi assim que conheci Chick Corea. Também recorria aos discos, os bolachões. Ouvia e tirava de ouvido o que não tinha em partitura. Foi assim que aprendi as Children’s Songs: botando a agulha no ponto, no vinil. Era a coisa mais difícil conseguir esses álbuns. Esse do George Shearing, meu irmão tinha conseguido com o César Camargo Mariano, de quem havia ficado amigo. O César e meu irmão sempre detestaram leitura. Sorte minha. Afinal, abri a cabeça com o João Gilberto e com esses álbuns de standards do George Shearing.
Brasília, anos 1970
BH – Qual foi sua impressão quando chegou no matão de Brasília, em 1974?
EM – Hahaha. Matão mesmo. Meu irmão dizia: o que você vai fazer naquela terra cheia de índios? Eu fiquei um ano e meio odiando Brasília. Eu tinha uma vida em que vivia indo a São Paulo, assistia a ensaios, shows, festivais, via todos aqueles artistas. Daí cheguei aqui...
BH – Não bateu aquela famosa deprê de quem muda para Brasília?
EM – Não deu tempo. Fui direto para a universidade. Logo depois montei o trio.
BH – O que você tocava nessa época.
Chauki Maddi (Tito Madi) [1929-2018]
EM – Lembro de uma aula do [músico, professor e livreiro tcheco] Bohumil Med em que toquei ao piano Balanço Zona Sul, do Tito Madi. O [baterista] Rodolfo Cardoso, que é sobrinho do [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso estava nessa. Ele usava tamanco, hahaha. Meninos usavam esse tipo de coisa. Lembro que ele pegou umas baquetas e batucou nos tamancos, fazendo a marcação. Eu olhei aquilo e continuei, a gente curtiu aquela levada. Foi assim que a gente se conheceu. Nesse tempo, a gente tocava na hora do almoço, no Departamento de Música da UnB. Lembro do Trajano, que tocou com a gente. Esse menino acabou preso naquela confusão de 1977, na UnB. A namorada dele, grávida, também foi levada. Aquilo foi um horror. Fizeram muito estrago nessas invasões. Até as moscas infectadas que estavam sendo pesquisadas no laboratório foram soltas. Muitos professores foram perseguidos, tiveram casas invadidas.
O Trio mandando um som na UnB, 1978 (?)
BH – Você foi militante de movimentos políticos?
EM – Nada, mas saía com as tabuletas de protesto. A gente morria de medo, pois estavam sempre fotografando as manifestações. No [jornal] Correio Braziliense saiu uma foto, eu e a [cravista] Ana Cecília Tavares, segurando uma tabuleta, nem lembro o que dizia.
BH – Você trabalhou com arquitetura em Brasília?
Jorge Helder (baixo) & Chico Buarque
EM – Trabalhei na prefeitura de Planaltina (DF). Na verdade, na administração regional. Mas não aguentei. Fiz casas populares por lá. Eu tinha um Fusquinha 66, que no final das contas foi vendido para o [baixista] Jorge Helder. Nessa época ele não era nada, bem menor que o baixo. A gente tocou vários meses no [piano-bar] Otelo.
BH – A música ganhou uma arquiteta.
EM – O mundo perdeu uma arquiteta, hahaha. Trabalhei com arquitetura até quando deu. Quando fui chamada para a Escola [Escola de Música de Brasília], aquilo virou um emprego, tinha salário e horário. Eu e o Zequinha [Galvão] montamos o primeiro curso de música popular. Foi aí que resolvi que não dava mais para levar as duas coisas. Optei pela música e disse: chega! Nunca mais peguei em projetos de arquitetura. Me achava uma arquiteta mediana. Percebi que pela música eu faria algo melhor. Então, fui fazer o que faço melhor.
Helio Delmiro e Cesar Camargo Mariano, na contracapa do LP Samambaia (1981)
BH – Muito bem. Vi um vídeo no qual você toca Samambaia, daquele disco do César Camargo com o Hélio Delmiro.
EM – César Camargo Mariano foi meu tema de mestrado, em 2003. Esse vídeo que você menciona é com o [baixista] Toni Botelho, foi no [festival de jazz do] Parkshopping. Esse vídeo, infelizmente não tem boa qualidade. Aquilo foi em 1992.
BH – Como foi a experiência com o [grupo brasiliense] Invoquei o Vocal? Você está na ficha técnica daquele LP de 1987. Muito bom disco, por sinal. Maestro Lincoln Andrade, regência.
EM – Lincoln Andrade. Eu trabalhei com eles por 8 anos. Viajamos, fiz muitos arranjos.
Invoquei o Vocal (sans Elenice) & Tavinho Moura, Brasília, 1986
BH – Teve um concerto do Invoquei o Vocal, na Sala Martins Penna [Teatro Nacional], com o Tavinho Moura.
EM – Também na [Sala] Villa-Lobos. Eu estava lá. Nessa época, eu estava na Escola de Música de Brasília.
Elenice Maranesi (piano) e Invoquei o Vocal, Foyer do Teatro Nacional, Brasília, 1987
BH – Tem um episódio dando conta de que o Invoquei o Vocal cantou para o [arquiteto e urbanista] Lúcio Costa, no [bar] Beirute. Você estava presente?
EM – Não.
Urbanista Lucio Costa, em última visita a Brasília (1992). Foto: Orlando Brito
BH – Salvo engano, vi essa história contada pelo [ex-governador do Distrito Federal José Roberto] Arruda, lembrando quando acompanhou Lúcio Costa em uma célebre visita a Brasília, na qual foi à rodoviária [do centro de Brasília]. Na hora do almoço, o arquiteto disse que não queria ir a nenhum lugar chique, disse que queria ver a juventude, e a comitiva foi parar no Beirute. Não sei bem como, o pessoal do Invoquei o Vocal estava por lá, daí rolou a cantoria em homenagem ao criador de Brasília. Histórias do Beirute. Na verdade, nem sei se esse fato é verídico.
EM – O Lincoln sempre foi ligado a política.
BH – Ele convidou você a fazer parte do grupo?
EM – Na verdade, eu me convidei. Eles estavam cantando a capella, no teatrão da Escola de Música. Quase todo mundo era de lá. Aquele sexteto me impressionou. A harmonia vocal me chamou a atenção. Eu tinha feito um arranjo para um quarteto de vozes da UnB. Mas eram vozes muito eruditas. Falei para o Invoquei o Vocal que gostaria de fazer um arranjo para eles, que concordaram. Gostaram e passaram a me pedir arranjos. Muita coisa de uma hora para outra.
BH – Alto lá. Escrever arranjos parece ser algo sofisticadíssimo. Pra você esse processo foi intuitivo? Qual foi o primeiro arranjo?
EM – When I Fall In Love.
BH – Nat King Cole?
EM – Esse aí. Muito bom gosto, cantava bem, repertório maravilhoso. E tocava bem piano. Essa música, apresentei pra eles, abri [a canção] a 6 vozes. Você fala que é sofisticado, mas acho o seguinte: a pessoa que toca piano, ela tem tudo para fazer o que quiser. O piano é o instrumento mais amigável que tem no mundo. Ele está na sua frente. Você põe a mão, sai o som.
BH – O violão também faz isso.
EM – É, mais ou menos. Eu não consigo fazer esses acordes do violão, eles machucam os dedos. A mão abertona, assim, como no piano, não tem. No violão você não enxerga muito bem, por causa da posição. Sem falar na extensão, a orquestra toda no piano.
BH – Acredito que você conseguia passar para o papel, nos arranjos, aquilo que muitos pianistas sabiam apenas intuitivamente. Você tocou na noite de Brasília, tal como foi a realidade de muitos pianistas que tinham até carteira [de Trabalho] assinada?
EM – Toquei no Otelo, no Piantella. [O guitarrista] Hélio Delmiro deu canja no Otelo, quando eu estava tocando lá com o Jorge Helder. Essa história foi boa. O Delmiro é cunhado do [guitarrista] Paulo André Tavares, que me avisou: olha, o Delmiro vai dar uma canja, mas você toma cuidado, viu? Ele não admite que mexam na estrutura da música. Você nunca mexeu na estrutura da música, não vai fazer isso agora. Se você não fizer o A-A-B-A, sei lá o quê, ele fica bravo e vai embora pisando duro! Pode errar acorde, melodia, errar tudo, mas não mexa na estrutura. Quando ele entrou, mandou Someday My Prince Will Come [standard da trilha sonora do desenho Branca de Neve e os Sete Anões]. Eita! O piano tronxinho desceu qualquer nota. Eu toquei em um tom, ele em outro, filho da mãe! Acho que é em Fá, ele tocou em Si Bemol, nem lembro mais. Depois, ele veio novamente a Brasília, no auditório do [Centro de Convenções] Ulysses Guimarães. Eu estava na plateia, no gargarejo, daí ele me viu e falou: queria agora chamar uma candanga. Era eu. Me jogou num fogo danado. Novamente foi Someday My Prince Will Come. Menos mal.
BH – Então você conheceu o piano de diferentes casas aqui em Brasília.
EM – Lembro de um no Lago Sul, o Baby Beef, uma coisa assim meio chique, trouxeram o churrasqueiro de São Paulo e tal. Super churrasqueiro, super boi, super vaca, hahaha. Não sei como me acharam, disseram que gostariam que eu fosse lá. Compraram um piano de cauda Essenfelder. Aliás, meia cauda. Disseram que eu tinha que inaugurar o piano. O Marco Maciel [antes de virar vice-presidente nos sucessivos governos de Fernando Henrique Cardoso] frequentava esse ambiente. O Ulysses Guimarães também.
BH – Ulysses comandava o Clube do Poiré [aguardente de pera], no Piantella.
Toni Botelho e Elenice Maranesi, 1988
EM – Mas veja, eles, os políticos, passavam por nós, cumprimentavam e iam para outro ambiente. A gente não tocava para bater garfo. O piano ficava em outra sala, com poucas mesas, quem gostava ficava por ali. Eu disse que precisava de outra pessoa me acompanhando, o [baixista] Toni Botelho. Relutaram que estavam começando e tal, mas acabaram aceitando. Eu sabia que não seria sócia, mas uma funcionária contratada. Então, o preço foi aquele. Olha, foi um ótimo lugar. De vez em quando apareciam uns fãs que iam ouvir a gente.
BH – Você fez uma residência no Baby Beef.
EM – Eu levava um gravadorzinho.... A gente fez bons arranjos, piano e baixo acústico. Essas foram as fitinhas que eu mandava para esses negócios de festivais e tal. Às vezes, tocávamos para as paredes, mas para nós era outra coisa, era ensaio. Fomos muito bem tratados, inclusive financeiramente, o que é raro, viu?
Elenice e Toni
BH – O duo com o Toni Botelho já existia nessa época, estamos falando do início dos anos 1990?
EM – Não, [o duo] foi formado nessa passagem pelo Baby Beef. Na verdade, a gente já tinha tocado por aí, em outras formações, com bateria.
BH – E os outros inferninhos das antigas em Brasília, onde os pianistas ralavam? Boate Tendinha, Chorão, Amigos, Panela de Barro, Cachopa....
EM – Bem, não me deixavam entrar nesses lugares.
BH – O bom e velho bas-fond. Vai ver você era muito sofisticada para esses ambientes.
EM – Vai ver tinha coisa que mulher nem entrava.
BH – Verdade. Você marcou presença na Casa Thomas Jefferson, grande reduto da boa música em Brasília.
I Festival de Jazz da Casa Thomas Jefferson, Brasília, 1978
Elenice, Ricardo e Rodolfo, o Trio, na Casa Thomas Jefferson, Brasília, 1978
EM – Em 1976, ou 1977.... Toquei com o Trio, no I Festival de Jazz da Casa Thomas Jefferson [1978]. Eu, Rodolfo Cardoso de Oliveira (bateria) e Ricardo Vasconcellos (baixo). Era um lance competitivo e o Trio levou o primeiro lugar. A gente tocou o Blue Rondo A La Turk (Dave Brubeck). Olha o prêmio: uma estatueta, dez LPs, e um contrato para tocar no Green Dolphy, boate com piano de cauda que ficava no [shopping] Conjunto Nacional.
BH – O que vocês tocavam nesses lugares?
O Trio no Green Dolphy, Conjunto Nacional, Brasília, 1978
EM – A gente tocava o que queria. Piano jazz instrumental. Esse Green Dolphy tinha umas coisas caras pra burro no cardápio, era frequentado por gente chique, que trabalhava nas embaixadas. Os frequentadores mandavam drinks, servir uísque importado. Só que a gente tinha um acordo com os garçons. Eles trocavam por guaraná. Mas veja: havia desdém pelo fato de a gente tocar Dave Brubeck. Tinha gente que não botava fé: essa baixinha vai tocar Dave Brubeck? O machismo era terrível. Numa reunião sobre cachês de músicos, ouvi alguém falar que eu tinha marido e não precisava. Ai, fala sério. Pra mim, foi uma ofensa.
EM – Ai, o maldito do teclado. Desculpe a maldade, mas dá vontade de pegar o japonesinho que inventou o teclado e jogar ele na parte mais funda do lago. Por favor, não grava isso. Não dá para comparar com o piano acústico. O [Tom] Jobim chamava teclado de Porrinhola.
Piano elétrico Fender Rhodes Mark I
BH – Você tocou um Fender Rhodes.
EM – Essa ainda era um piano.
Piano elétrico Yamaha CP70
BH – Yamaha CP70.
EM – Isso era um piano elétrico.
Sintetizador Yamaha DX7
BH – No disco do Invoquei o Vocal você toca um [teclado] Yamaha DX7.
EM – Odiei aquilo. Aquele claing-cloing.
BH – Cheio de timbres esquisitos e interessantes.
EM – Aí é que está, é outro instrumento, não é um piano acústico, que você sente na ponta dos dedos. As teclas, a extensão dos dedos, sem falar no pé direito. Veja, o contato é físico. E os harmônicos? Socorro!
BH – Você não tira harmônicos em teclados.
EM – Jamais. Piano é madeira, cordas, vibração por simpatia. É orgânico.
BH – Em 1981, você acompanhou Nara Leão [1942-1989], aqui em Brasília.
EM – Na Sala Funarte. Ela foi selecionada para vir tocar aqui em Brasília e deveria ter vindo com a banda dela. Mas naquela época já tinha essa miséria de orçamento e não tinha como trazer o pessoal. Ela pediu um conselho para o [pianista e compositor] Antonio Adolfo, que disse: ah, você vai para Brasília, procura a Elenice Maranesi, que é gente boa, você vai ficar feliz. Isso quem me contou foi a Nara. Era uma pessoa ótima.
BH – Então ela veio sozinha?
EM – Bem, ela tinha arrumado um namorado por aqui, ficou com ele e tal. Na época eu tinha esse trio, mas não lembro porquê o [baterista] Rodolfo Cardoso não pode participar, acho que estava de férias, tinha viajado. O baterista foi outro. A gente também tocou na Sala Villa-Lobos [Teatro Nacional Claudio Santoro, em Brasília], só piano e voz. Nunca ouvi essa gravação.
Nara Leão em Brasília (1981): destaque
no jornal Correio Braziliense
BH – Nara não tinha aquela voz cheia, mas cantava com uma ternura apaixonante.
Nara Leão, na Sala Funarte, Brasília, 1981
EM – Ela sabia fazer sucesso, era de um grande profissionalismo. A primeira chegar no ensaio, nunca deu uma de estrela pra cima de ninguém. Tratava todo mundo de igual para igual. Tempos depois eu liguei pra ela e disse: faz um tanto que você não vem a Brasília. Ela respondeu: não, Elenice. Eu estou meio boba agora, estou com medo de avião. Depois, um mês ou pouco depois, estava no carro, ouvindo rádio e tocaram várias músicas da Nara. Foi quando soube que ela tinha morrido.
BH – Poxa, vida. Nara faz uma falta danada, hein. E tinha uns joelhos....
Os joelhos de Nara
EM – Hahaha. Depois que eu peguei mais intimidade com ela, eu disse: deixa eu ver os joelhos?
BH – Uau, é mesmo? Que privilégio!
EM – Naquele tempo todo mundo falava. Ela também me ensinou esse negócio de hena nos cabelos. Foi uma pessoa que passou rápido pela minha vida, mas lembro dela até hoje. Deixou muita saudade.
BH – Poderia falar sobre o disco Pé de Pequi [2005]? Ele parece sintetizar sua trajetória musical. Ao mesmo tempo, reúne músicos com os quais você parece ter grande afinidade.
EM – Esse é meu único trabalho, digamos, de autor, no qual eu estou no centro do negócio, mas foi algo pensado muito mais para homenagear meus parceiros. Participam [os violonistas] Paulo André Tavares e Lula Galvão, [os baixistas] Oswaldo Amorim e Anderson Santos, a [flautista] Beth Ernest Dias. Enfim, nem todos puderam estar aqui. Marco Pereira não está, nem Roberto Corrêa. Eles estão na minha memória com muito orgulho e satisfação.
BH – Acho interessante, pois em algumas faixas você não participa.
EM – Em Cenas, o Paulo André toca violão solo. Em Balada Pro Nelsinho, tocam o Nelson Faria e o Lula Galvão, mais baixo e bateria. Em Céu de Maio, é aquela orquestrinha [Silvia Passaroto, harpa; Beth Ernest Dias, flauta etc], música e arranjos meus.
BH – E por que seu piano não está presente?
EM – Gosto desse tipo de trabalho, por isso que não sou só jazzista. A Silvia e a Beth tinham um duo de harpa e flauta, bem clássico. Certa vez elas me pediram uma música, se eu não escreveria algo para elas. Veja, na Escola [Escola de Música de Brasília] tem [ensino de] todo tipo de instrumento. A Silvia me mostrou como funcionava a harpa.
BH – Você não verte do piano para harpa, imaginando que o quadro metálico do piano é uma harpa deitada?
EM – Nana-nina-não. É outra coisa. A harpa tem três pedais, o piano também, mas é totalmente diferente. É uma coisa muito difícil tocar harpa, a posição das mãos... Machuca os dedos, sangra até. Enfim, a escrita é complicada. Por exemplo não posso escrever Si, mas, conforme a tonalidade da peça, tem que ser Dó Bemol. Caso contrário, atrapalha a vida da harpista. É um trabalhão danado, mas eu gosto. Músicas minhas que tem por aí, eu gosto. A maioria eu jogo fora. Esse Pé de Pequi eu passei quatro meses escrevendo. Na mão. Não tinha computador. Escrevia à noite, ia dormir e no dia seguinte.... Ai, que porcaria.
BH – Um senso de autocrítica elevadíssimo. Você deve ter gravado essas ideias, para consumo próprio.
EM – Quando gravo, então, é que percebo que não ficou bom.
BH – Nesse Pé de Pequi tem frutos plantados tempos atrás e outros colhidos mais recentes, não?
EM – Pé de Pequi e Céu de Maio, compus nos anos 1980. Cenas e Shamu são mais recentes. Desprezada também é dos anos 2000. Vôo Noturno é do Carlinhos Galvão. Jatiúca é o nome de uma praia de Maceió. Fiz essa para o [baixista] Toni [Botelho].
BH – O que significa Shamu?
EM – Shamu era um gato de estimação. Outro gato. Nessa faixa tem um vocalzinho.
BH – Nesse disco tem duas versões de Missing Home, peça de autoria de Gaudêncio Thiago de Mello [1933-2013], que vem a ser irmão do poeta Thiago de Mello.
EM – Uma delas é um bônus track. Foi gravada em um piano digital, com o Paulo André Tavares naquele violão barrigudo.
BH – Um Ovation?
EM – Isso. Todo violonista queria ter um negócio desses. Usei um [piano elétrico] Clavinova. A gente registrou em um gravadorzinho em cima do piano, em uma sala que eu usava para ensaio. Acho que ficou muito bonito. O [Gaudêncio] Thiago de Mello era muito nosso amigo. Ele até hospedou o Paulo André, quando foi fazer mestrado nos Estados Unidos.
BH – Como ouvinte, se me permite, percebo que o piano é a sua voz, seu meio de expressão. Em Fotografia [Antonio Carlos Jobim] isso sobressai. Belo arranjo, hein. Imagino que essas sobras que você afirma descartar renderiam outro disco fabuloso.
EM – Em Fotografia não tem exatamente arranjo, mas a levada meio funkeada, que não é funk. E tem a harmonia. Aquele Dó Maior virou Dó Menor. No improviso, são duas pessoas tocando juntas [Elenice, piano; Anderson Santos, baixo elétrico].
BH – Anderson Santos fez a produção executiva do disco.
EM – Ele é excelente. É dentista, faz canal, hahaha. Fui com ele a um encontro de contrabaixistas, ele podia levar alguém para tocar. Fotografia toco há muito tempo, inclusive com bateria; a música tem 12 compassos, na verdade, é um blue jobiniano: fica maior, e menor. Maior e menor. Parece pobre, mas não é.
BH – Falando em Jobim, o que você mais gosta?
EM – Urubu e Matita Perê. Jobim, na verdade, nunca foi bossanovista.
BH – Não?
EM – Ele é um maestro de grandes obras. Bossa-nova mesmo é João Gilberto. Jobim é fora de série. Sou fanzoca assumida. Aquele disco lá [apontando para Urubu], eu passo até mal. Eu entro nele, e fico: por que eu não fiz algo assim?
BH – Você não tem um Urubu para chamar de seu?
Michelle
EM – Não, hahaha. Tenho minha gatinha Michelle.
BH – Enfim, tem material para um próximo disco?
EM – Olha, meu negócio é tocar piano. E gosto muito de tocar com alguém. Prefiro do que ficar tocando solo. Quando estou sozinha em casa, tocando, às vezes eu curto alguma coisa, mas é raro. Adoro trocar informações. Tenho em mente voltar a tocar em trio [piano, baixo e bateria] standards do jazz e bossa-nova. Coisas que gosto e que são universais nos gêneros.
BH – Você tem registros em outras gravações.
EM – No LP do Invoquei o Vocal [1987] participei como pianista e arranjadora, de vocal e instrumental. Acho que meu trabalho tem muito de arranjos vocais. Fiz mais de 40 arranjos, para vozes abertas. Cito vários corais: o Coral Brasília; o Cocam, da Escola de Música de Brasília; Coro de Câmara do Senado, vários me pediram arranjos. Não vou saber dizer qual o primeiro arranjo que assinei. Essa informação está perdida nos meus alfarrábios. Fui professora da Escola de Música de Brasília e lá dei aula de música da câmara. Inaugurei o Núcleo de Música Popular, juntamente com os falecidos [baterista] Zequinha Galvão e [baixista e maestro] Carlos Galvão, em 1985. Lembro que esse núcleo foi criado contra tudo e contra todos. Coloquei o popular na música de câmara, que era só voltada para o erudito. Isso causou espanto, imagina.
BH – Ensinar música popular em escolas parece que sempre teve resistências.
EM – Exato. Chega a ser preconceito. Isso ofende a gente. Ouvi várias vezes que o pianista popular estraga o piano. “O músico popular soca o piano”, é o que dizem. Gente como eu e você dizem coisas assim.
BH – E de onde vem isso?
EM – Não sei, isso não vem de pessoas loucas ou desvairadas. É preconceito. Não consigo explicar. Por que uma pessoa branca não é igual a uma negra, amarela, roxa, o que seja?
BH – No mundo da música isso parece ser mais incongruente, porque você vê a riqueza de quem toca jazz, erudito ou popular. O músico inspirado parece não ter barreiras.
EM – Esse preconceito parte dos dois lados, mas do erudito era e é mais evidente.
BH – Um momento marcante na sua trajetória foi o Free Som, aquela grande seletiva que escolheu músicos para tocar no Free Jazz Festival, de 1990.
EM – Esse Free Som foi em 1990. Eu e o [baixista] Toni Botelho participamos dessa seletiva de nível nacional, no Rio Jazz Club [antigo hotel Meridien], em Copacabana. Nosso projeto Jazz Brasileiro ganhou menção honrosa do júri, presidido pelo [jornalista] Zuza Homem de Melo. No final, foram escolhidos o recém falecido baixista Arthur Maia [Cama de Gato], e outros como o [guitarrista] Natan Marques, que tocou com a Elis Regina.
BH – Se me permite um comentário. Lembro de ver na Globo o pianista Michel Petrucciani [1962-1999], no Free Jazz de 1987. Uma apresentação impressionante: a plateia meio estática no início, lá pelas tantas, todo mundo se revirando nas cadeiras. Piano suingado maravilhoso. O cara era um gênio!
EM – Na Globo, veja só. E como ele tocava bonito.
BH – Ele usava um pedal adaptado. Ou tocava sem pedal, nem sei mais.
EM – Ele tinha as mãos enormes, em proporção ao corpo. Ele tinha a facilidade e o domínio, conseguia ligar as notas só com as mãos. Sem pedais.
BH – Uau. Bem, essa época do Free Som [1990], parece ter sido bem prolífica, você atuou em várias frentes, não foi?
Toni Botelho e Elenice Maranesi
EM – No [jornal] Correio Braziliense saiu assim: o ano de ouro de Maranesi e Botelho, listando várias coisas que aconteceram. [Com Toni Botelho] Tocamos no México [Festival Internacional de Jazz de La Ciudad de Mexico, 1990], nos Estados Unidos [Washington, Baltimore e Annapolis], na seletiva do Free Som, fomos premiados na Concorrência Fiat, tocamos no Park Jazz Festival [no ParkShopping, em Brasília]. O duo com o Toni Botelho foi muito prolífico, mas também formei duo com o Marco Pereira e com o Paulo André Tavares.
BH – Piano e violão.
Elenice e Marco Pereira (violão Ovation)
Paulo André Tavares e Elenice Maranesi
EM – Isso. Se você toca violão, sabe que a região central do piano, digamos, corresponde à região boa do violão. Então, era assim, cada um na sua, sem embolar as coisas. O piano e o violão se alternavam fazendo os baixos. Com eles [Marco Pereira e Paulo André Tavares], como se diz, a gente rendia muito pano pra manga. Toquei Chick Corea com o Marco Pereira e Bill Evans, com o Paulo André.
Roberto Corrêa e a viola de cocho
BH – Você também tocou com o violeiro Roberto Corrêa. Piano e viola caipira?
EM – Viola caipira e sintetizador. Usei [timbres de] cordas, vários efeitos exóticos, foi na obra dele, Suíte das Cobras. Muito interessante.
BH – Que sintetizador você usou?
Roland Juno-60, o original
EM – Um Roland Juno. Até gostei desse. Ficou comigo um tempo, aprendi a mexer nele.
BH – Você também tem registros na área erudita.
EM – Com a [harpista] Silvia Passaroto fizemos uma coisa de música medieval.
BH – [O guitarrista] Lula Galvão também foi um parceiro, não?
EM – Lula Galvão e [a cantora] Rosinha Passos, tocamos na Thomas Jefferson [em 1989], um roteiro musical de jazz e bossa-nova. Também estive com a Rosa Passos em outras ocasiões.
BH – Fazer jazz em Brasília sempre foi uma façanha, não?
EM – Era uma coisa exótica. Muita gente ficava espantada. Lembro que muitos falavam: mas como que você ainda está aqui [em Brasília]? Você tem que ir pra lá [Rio/São Paulo]. E eu: vou pra lá, onde? Vou ficar na rua? Olha, todos esses convites, esses prêmios, foram a partir de fitinhas K7 e um release em folha de papel que eu enviava.
BH – Você já tocava jazz, em Brasília, nos anos 1970. Muita gente comenta sobre um famoso trio que marcou época.
O Trio (1978)
EM – Como disse, o primeiro trio que tive aqui em Brasília foi em 1976, com o Ricardo Vasconcelos, no baixo e o Rodolfo Cardoso, na bateria. Nesse tempo, o Ricardo Vasconcelos ainda tocava baixo elétrico. Fizemos muito sucesso. Eu tinha vindo de São Paulo, com a minha bagagem de Luizinho Eça, Zimbo Trio, Tamba Trio. Com esse trio ganhamos o primeiro festival de jazz, da Casa Thomas Jefferson, em 1978.
BH – Você guarda uma semelhança com o Luiz Eça [1936-1992] que, além de exímio pianista e professor de piano, era um baita arranjador. Aliás, perdoe a comparação, Luiz Eça assinou sozinho poucas composições. Ele era um arranjador, que quando fazia a música acontecer, mesmo a música alheia, pode apostar que ele também era o criador. Enfim, estava em outro nível na música. Vejo em você algo parecido. Suas principais composições estão no CD Pé de Pequi. A gente aqui em baixo fica perguntando: tem algo mais autoral por aí?
EM – Ui. Eu como compositora não sou nada, nem ligo.
BH – Talvez Luiz Eça pensasse assim.
EM – Lembro quando ele tocou aqui em Brasília, na Sala Funarte, e chamou o piano de caçarola. Por quê? Aquilo tinha um som de lata. Era um Essenfelder pavoroso.
Complexo Cultural Funarte, Brasília. Foto: Livio Avelino
BH – Você foi diretora da Sala Funarte.
EM – Aquilo foi um terror na minha vida. Nunca tinha nada, nunca tinha dinheiro. Eu fazia tudo, os programinhas, imprimia, lidava com o Ecad, ficava na portaria vendendo bilhete, arrumando troco, nem me fale. Eu fiz até as luzes de um show da Cássia Eller, ninguém sabe disso, hahaha. Devo muito ao Elcio Patrocínio, profissional excelente, que me ensinou a mexer na mesa de iluminação. Depois ele virou iluminador no Palácio do Planalto, acho que desde o Fernando Henrique Cardoso, depois o Lula. A gente foi colega de dores de cabeça.
BH – Nessa época, onde tinha um piano respeitável, em Brasília?
EM – Na Casa Thomas Jefferson, que até hoje mantém uma programação, sempre gostei de tocar.
O atual Steinway da Casa Thomas Jefferson, Brasília
BH – Acho que por lá só passaram pianos de cauda Steinway.
EM – Americano, né? Eles têm uma ligação com a Embaixada Americana. Bem, lá, além do piano e do auditório com boa acústica, sempre teve um público seleto. Sem querer ser elitista. E outra: entrada franca. Conforto para o público, e conforto para os músicos. No camarim, sempre tinha um café, um tratamento cortês.
BH – Um certo tratamento digno, digamos.
EM – Sim. Já passamos por apertos, lugares sem camarim, sem banheiro, tínhamos de levar até o papel higiênico.
BH – O público nem imagina o que tem na cozinha do restaurante.
Rogério Resende dá o comando: toca, Elenice!
EM – Enquanto isso, casas como o Clube do Choro até hoje não têm um piano decente. Veja, a gente tem um estilo e um carinho muito grande por aquilo que faz. Gosto muito de fazer dinâmica, staccatos, legatos etc. O piano tem que corresponder. Teclados, tchau. Não toco mais esse tipo de coisa. Aqui em Brasília, graças ao [técnico-afinador e connoisseur de pianos] Rogério Resende, a gente tem um diferencial.
Gigantes do jazz: com a amiga Leny Andrade, Brasília, 1998
BH – Como que você foi abduzida pelo jazz? A história que ouvi é que você é sinônimo de jazz em Brasília.
EM – Hahaha. Teve gente que falou: Elenice Maranesi, uma jazzista assumida. Eu nunca disse isso, nem me acho. Não sou jazzista, nem improvisadora. Tecnicamente, não me considero. Meus improvisos são derivados da melodia e da harmonia. Sou muito tonal. Não tenho capacidade para fazer música atonal. É preciso muita técnica. Veja o André Mehmari. Ele está a mil metros acima de mim.
André Mehmari: mil metros de altura
BH – Descontando a modéstia, tudo bem.
EM – Não. É cada um no seu lugar. Já pensou se fosse todo mundo igual? Eu o admiro muito. O Leandro Braga também. Ele fez o prefácio do meu livro [Brazilian Piano Book – Partituras em Notação Tradicional e Melodia Cifrada – Volume2], ai meu Deus! Fiquei emocionada com os comentários feitos na introdução do livro. Marco Pereira também escreveu. Ai, ai. Ele não sobe mais porque já está lá nas estrelas. Enfim, tive a sorte e o prazer de ter essas pessoas ao meu lado.
BH – Sobre o livro, aliás, os livros. O primeiro, A Improvisação na Música Popular [1987] está esgotado faz tempo, não é?
EM – Ai, gastei horrores, do próprio bolso, para fazer essas obras. A gráfica é cara e os direitos autorais idem. O produtor e o diagramador, também. No momento, estou trabalhando na segunda edição do primeiro. Veja, depois de dar tanta aula, de ver tanto aluno bom, de ver muitos até virarem professores, ainda assim ouvia vários reclamando: por que não consigo tocar música popular, não consigo ler cifra, nem encadear os acordes e tal. Daí eu disse: gente, vou fazer um livro para quem tem conhecimento do instrumento e vou colocar ali as sequências harmônicas, ritmos. Não dá para querer tocar só intuitivamente, achando que está bom. O piano não é um instrumento fácil. Ele é muito bacana, muito completo, mas se você começar a abrir muito a distância entre as mãos, fazer esse movimento normal de swing, já não dá certo. Fica esse buraco no meio. Resolvi colocar no papel músicas conhecidas. Se a pessoa tem conhecimento das notas, ela sente na mão. É aquilo que falei do George Shearing. Quando pus a mão.... Nossa, que lindo! Está na sua mão e entra na sua cabeça. É uma mecânica que tem que funcionar. Os livros foram escritos com esse intuito.
BH – Tem uma ligação entre o show Arco Íris, que você apresentou na Sala Funarte, em Brasília, em 1987, e o lançamento de seu primeiro livro, A Improvisação na Música Popular. Consta que você juntou um dream team dos músicos de Brasília. A direção artística foi do [artista plástico] Zello Visconti.
Very nice, Elenice: na Sala Funarte, 1987
EM – Participaram o Ricardo Vasconcelos (baixo elétrico), o Toni Botelho (baixo acústico), Beth Ernest Dias (flauta), Silvia Passaroto (harpa), Heloisa Müller (piano), Roberto Correa (viola caipira), Marco Pereira (violão), Pachá Gallina (violoncelo), Paulinho Magno (sax soprano) e o Invoquei o Vocal. Nem todos tocaram ao mesmo tempo. Esse show foi muito bacana. Na época teve muita cobertura na mídia local.
BH – Falando da seleção musical nos livros, é tudo de alto nível, tem composição sua, Tom Jobim, Ary Barroso e até Burt Bacharach. Música popular.
EM – Olha, música popular não é só tocar as notas e pronto. Não é só staccato [indicação na partitura de que a duração do som deve ser reduzida aproximadamente à metade; notas curtas], tem que fazer legatos [grosso modo, indicação que as notas devem ser tocadas sem interrupção], usar pedal. Costumo dizer que o piano popular tem que ter uma sujeirinha.
BH – Como assim?
EM – Não é aquela coisa limpíssima, as notas soltas uma das outras, todas arrumadas. Estou falando em tocar o Ré, o Mi e o Fá ligadinhos, um gruda no outro, daí vem a sujeira. E o pedal, que gosto de usar bastante. Chick Corea faz assim. O swing do César [Camargo Mariano], olha no pé, para você ver o uso do pedal.
BH – César Camargo Mariano usava muito piano elétrico, não?
EM – Há muito tempo que ele não usa. Eu tinha um [piano elétrico] igual ao que ele usava.
BH – [Yamaha] CP70. Esse piano não tem baixos. Piano para solos, não é verdade?
EM – Tem corda, martelo e tudo, melhor que teclados, apesar de a região dos graves sempre ter sido o ponto fraco.
BH – Essa falta de baixos não incomoda?
EM – Tive que tocar muito nesses elétricos. No Invoquei o Vocal, usei muito piano assim. Pelo menos é piano, tem tecla de piano, você faz pianíssimo, forte, usa pedal.
BH – Voltando aos sintetizadores, apesar de ter usado aqui e ali você não parece ter muita queda por esse tipo de coisa. Mesmo os analógicos?
Elenice e Renato Vasconcellos
EM – Não. Admiro, por exemplo o Renato Vasconcellos e o Daniel Baker, que usam muito bem os pianos elétricos. Sou fã do Daniel, que é um grande jazzista.
BH – Fender Rhodes? Já falamos dele.
EM – Gostei mais, tem timbre. É um piano. Você sente na mão. Veja, o violonista abraça o seu instrumento; o cellista também; o saxofonista beija o instrumento, sente ele vibrar. O pianista, coitado, só tem a ponta dos dedos e a ponta do pé. O que o [Michel] Petrucciani fazia é um milagre. Admiro muito quem toca teclado, como teclado! Põe cordas e tal. Acho bacana. Mas não sei fazer isso. Nada igual ao piano acústico.
Hermeto Pascoal plays a DX7, SESC (SP)
BH – Recentemente vi o Hermeto Pascoal, aqui em Brasília, tocando um Yamaha DX7.
EM – Sério? Onde ele arrumou isso? O Hermeto não existe. Você dá uma garrafa e ele tira o som.
BH – Bem, Hermeto, 82 anos, entrou no palco com uma taça de vinho, que ergueu e ofereceu à plateia.
EM – Hahaha. Ele é fora de série. Toquei em um desses cursos de verão [da Escola de Música de Brasília] com o baterista do Hermeto, o Márcio Bahia.
BH – Nesse diálogo entre popular e erudito, vi algo que parece sintetizar bem essa conversa, a Sonata Para Dois Pianistas, do [compositor, arranjador e pianista francês] Claude Bolling, que você executou com a [pianista] Ana Amélia Gomyde. Até onde percebi, você no toque popular e a Ana Gomyde nas passagens eruditas. A peça tem pianos diferentes, não é?
EM – Ele escreveu cada nota dessa composição. Essa peça é um achado do Bolling. Ele era pianista em um trio de jazz (piano, baixo e bateria). Daí começou a convidar solistas de outros instrumentos. Salvo engano, o primeiro foi o [flautista] Jean-Pierre Rampal [1922-2000]; o Bolling escreveu as partes da flauta.
BH – Ao que parece essa gravação [Suite For Flute and Jazz Piano Trio, 1975] foi a primeira do Rampal fora do quadrado dele, a música erudita.
EM – Isso mesmo. O Bolling escreveu tudo, chamou o Rampal e foi um sucesso no mundo inteiro. Eles lançaram a partitura e todo mundo queria tocar. Depois ele começou a fazer algo parecido para outros instrumentos. O Bolling fez trilha para cinema, ele é muito produtivo. Ainda está na ativa.
BH – Os franceses são muito doidos, não é? O [pianista] Jacques Loussier também tem um trabalho em que verteu Bach para o jazz.
EM – Esse fez a minha cabeça.
BH – Outro dia mostrei esse som para o [pianista erudito] Joel Bello Soares e ele ficou bravo, reagiu indignado: "mas o que é isso? Que absurdo! Isso nunca foi Bach....". Nem sei o que ele diria do Jethro Tull tocando Bach.
Sonata Para Dois Pianistas, na Casa Thomas Jefferson, agosto/2018
Sonata Para Dois Pianistas, na Escola de Música de Brasília, outubro/2018
EM – Hahaha. Tá vendo? Esse trabalho do Bolling [apresentado em 2018, na Casa Thomas Jefferson e na Escola de Música de Brasília] foi muito intenso, mexeu muito com a gente. Eu e a Ana Amélia ensaiamos exaustivamente. Cada uma teve umas 46 páginas [de partitura] ou mais. E vira, vira. Cada pedaço mais difícil que o outro. E aquilo tem que ser encaixadinho e tudo, né? O quanto que eu fui [ensaiar] na casa da Ana Amélia. Aquilo foi tipo um emprego. Vários meses, duas, três vezes por semana.
BH – Duas pianistas montaram a espinha dorsal [da Sonata Para Dois Pianistas, de Claude Bolling] e os outros dois [Paulo Dantas, baixo; e Ronaldo Lima, bateria] vieram acompanhar a viagem. Um Tour de Force...
Bolling: Tour de force
EM – No início, bem devagar, a gente pedia para [o baixo e a bateria] não irem tão depressa. Aí, volta, com calma, toca de novo. Ensaiamos essa peça enorme várias vezes. Foi difícil.
BH – Quem é ouvinte e consumidor de música, mal sabe. Os que fazem ela acontecer penam que não é fácil.
EM – Olha, quem faz música parece que falta um monte de parafuso.
BH – Como?
EM – Hahaha, a gente não bate bem, não. Ainda mais [fazendo] música instrumental. A gente sabe que não vai dar certo [como empreendimento lucrativo].
BH – Seu apartamento foi palco de muitos ensaios, não foi? Dizem que o grande jazz de Brasília passou por aqui.
A verdadeira dona do piano
EM – Eu tinha naquele canto um piano chulezinho, mas que funcionou bastante. E muita gente ensaiou aqui. Lembro do Marco Pereira, sentado ali, ligava o violão Ovation naquele aparelho de som do tempo do Onça. E a gente fez muita coisa bonita. Só não tinha esse bichão [o cobiçado piano Kawai mantido e enfeitiçado por Rogério Resende].
BH – Duo, trio, o que você mais gosta?
EM – Trio, mas é aquela história: tem que ser O Baterista. Não é fácil. Para quem tocou com [os bateristas] Zequinha [Galvão], e Erivelton [Silva], que está no disco Pé de Pequi....
BH – Um passarinho contou que você anda ensaiando com um trio. Novos arranjos estão vindo?
EM – Arranjos da turma. Standards do jazz e da bossa-nova.
BH – Uau.
EM – Esse promete ser mais calmo, mas não tão fácil. Aí é o seguinte: uma folha cifrada e algumas convenções. Pra quem gosta [de jazz trio] vai ser uma coisa bacana.
Prévia do que vem por aí
Obrigado,
Elenice Maranesi
Rogério Resende
Autores das fotos não creditados